Não será fechando os olhos e apostando na volta a uma
normalidade perdida que os problemas serão resolvidos
[RESUMO] Professor de filosofia
analisa que fraco desempenho da esquerda nas eleições municipais deste ano
decorre de uma série de complexos problemas aos quais ela não vem oferecendo
resposta adequada, como a crescente desigualdade econômica, a precarização do trabalho,
a submissão da política à lógica das redes sociais, os desastres ecológicos e o
crescimento da extrema direita. Fazer de conta que a crise é passageira, e não
produto de tendências de longo prazo, apenas irá acelerar derrocada das forças
progressistas, avalia.
A despeito de eventuais viradas na votação deste final de
semana, o
veredito sobre o resultado das eleições municipais está dado. Ele indica
uma incapacidade
da esquerda em transformar sua volta à Presidência, uma vitória apertada há
dois anos, em uma retomada mais ampla, capilarizada na política local em
diferentes partes do país.
Indica também que
o governo Lula falhou até aqui em reacender o otimismo que acompanhou
sua eleição duas décadas atrás, ou mesmo as memórias positivas do que veio
depois.
Percebe-se ainda uma consolidação
do centrão —como pano de fundo que, de tão pervasivo, ameaça a todo
momento ocupar o centro da cena política brasileira— e do bolsonarismo —não
apenas uma força que pode continuar a existir para além de Bolsonaro, mas um
vírus suficientemente potente para sofrer mutações altamente contagiosas, como
demonstrou a candidatura de Pablo Marçal em São Paulo.
Diante disso, proliferam os diagnósticos de crise, ou mesmo morte,
da esquerda brasileira; todos são justos à sua maneira. Mas o que ocorre no
Brasil está longe de ser um caso isolado.
E ainda que estas eleições tenham sido marcadas por questões
bastante nossas —o fortalecimento de um bloco de lideranças evangélicas
alinhadas à extrema direita, a infiltração crescente do crime organizado na
política, o papel
determinante das chamadas emendas Pix no aumento da taxa de reeleição—, elas têm como pano de fundo um conjunto de
enigmas que a esquerda global hoje enfrenta, sem saber dar-lhes resposta.
Isso deixa claro que tampouco se trata de
uma simples dificuldade de comunicação, como se fosse apenas a propaganda em
tempos de eleição que falhasse —e bastassem caras mais sorridentes ou
linguagens mais "jovens" para tudo se resolver.
Estamos falando de nós problemáticos que afetam tanto a
substância da política como a forma como ela é feita, nos períodos de pleito e,
sobretudo, fora deles. Eles não correspondem a uma simples hierarquia de quais
seriam as "questões mais importantes de nosso tempo", embora
certamente estejam entre elas, mas antes são as questões que definem nosso
tempo, diferentemente de outras (como o racismo, a diferença entre gêneros, o
colonialismo) que são a herança maléfica de períodos anteriores.
Neste contexto mais amplo precisamos situar o impasse que as
eleições municipais revelam, que marcarão não apenas o próximo ciclo eleitoral,
mas as próximas décadas.
Desigualdade e viração
O primeiro destes nós, sob muitos aspectos o mais
determinante, tem a ver com o crescimento
da desigualdade econômica, e por extensão política, nas últimas décadas.
Em comparação ao período do pós-guerra, a era neoliberal viu
uma explosão da concentração de riqueza, claramente expressa no crescimento do
número de bilionários e no iminente surgimento dos primeiros trilionários, que
se traduz em concentração de poder político.
Cada vez mais, um grupo restrito de indivíduos tem uma
capacidade infinitamente maior de influenciar as ações governamentais, na
comparação com a maioria da população.
Isso ficou muito evidente quando, após a crise de 2008,
partidos tanto de direita quanto nominalmente de esquerda em diversos países
acorreram a salvar os bancos e transferiram o custo do resgate para a
população, na forma de cortes na legislação trabalhista e na proteção social.
É visível também no modo como o presidente Emmanuel Macron
simplesmente ignorou a vitória da esquerda nas eleições parlamentares
francesas para
apontar um governo que tende a fortalecer a extrema direita de Marine Le Pen no
curto prazo; ou na maneira como o
socialista Olaf Scholz (Alemanha), o trabalhista
Keir Starmer (Reino Unido) e os
democratas Joe Biden e Kamala Harris (Estados Unidos) dão as costas a
uma opinião pública crescentemente crítica ao Estado de Israel para
continuar apoiando ações cada vez mais indistintas do genocídio nu e cru.
O que isso significa para a forma como se faz política é que
o consentimento ativo da população parece importar cada vez menos: os Estados
se acostumaram a operar com baixa legitimidade, aproveitando-se de, e
reforçando, uma tendência histórica de queda do engajamento na política.
E quando governos nacionais tentam se comportar de outra
forma, como
foi o caso da Grécia sob o Syriza em 2015, mecanismos internacionais podem
facilmente dobrá-los. Em resumo, tornou-se muito mais difícil influenciar
governos não só desde fora, como, inclusive, desde dentro.
O segundo nó se refere ao que se costuma chamar de
"transformações do mundo do trabalho": o aumento do subemprego e da
informalidade, a precarização, a uberização etc.
Isso não apenas faz com que as velhas estruturas sindicais
apareçam como defensoras de um estrato cada vez mais restrito de trabalhadores
formais, mas cria todo um novo universo ao qual as categorias sobre as quais a
luta laboral foi historicamente construída não se aplicam: não há mais
identificação do trabalhador enquanto trabalhador, direito de se organizar,
tempo livre, espaço de trabalho como espaço de organização etc.
Neste campo, os pleitos municipais trouxeram alguns sinais
positivos que a esquerda faria bem em explorar e aprofundar, como a eleição
para a Câmara Municipal carioca de Rick Azevedo, do movimento Vida Além do Trabalho, que luta contra a
escala 6x1; e a proposta de Guilherme Boulos, já implementada em lugares como
Juiz de Fora e o Distrito Federal, de instalar pontos de apoio para
entregadores, que têm o potencial de se constituírem como locais de troca e
organização para os trabalhadores de aplicativo.
O terceiro nó, diretamente ligado ao anterior, tem a ver com
o que poderíamos chamar de longa duração da reprogramação subjetiva produzida
pelo neoliberalismo. Décadas de ajustes e reformas feitas sob a lógica do recuo
das proteções sociais e individualização dos riscos não têm um efeito apenas
sobre a forma como as pessoas vivem, mas também sobre como elas veem a si
mesmas e suas relações umas com as outras.
Daí que mesmo estratos hiperexplorados como os trabalhadores
de aplicativo se identifiquem com a figura do empreendedor, e que o imperativo
da "viração" —a necessidade de fazer o que for preciso para
sobreviver— se traduza em internalização da ideia de que a vida social é uma
guerra de todos contra todos mediada pelo mercado, de que o fracasso é uma
responsabilidade pessoal, e daquilo que poderíamos chamar "solidariedade
negativa": o sentimento de que "se eu tenho que passar por isso, todo
mundo também tem".
Simultaneamente, a financeirização da economia e o fato de
que o trabalho assalariado não é mais garantia de uma boa vida explicam que
cada vez mais gente se volte para soluções mágicas de enriquecimento, como a
indústria dos coaches e as apostas online.
Do ponto de vista da forma, isso significa que não é mais
evidente que as pessoas queiram mais proteção, mais cuidados, mais
participação. A combinação de um largo histórico de frustrações na entrega
desse tipo de promessa com a crença crescente em atalhos, ainda que
improváveis, faz com que mesmo setores historicamente desprotegidos prefiram
estar "livres" para empreender e vejam atitudes antes tidas por
antissociais, a evasão fiscal ou o recurso à legalidade, como sinais de
esperteza e competividade.
Isso ajuda a explicar porque parte do eleitorado parece
infinitamente capaz de perdoar comportamentos questionáveis de figuras como
Donald Trump, Javier Milei e Pablo Marçal, assim como a receptividade de um
discurso anticomunista para o qual "comunismo" é qualquer coisa que
busque impor algum limite ao capitalismo de faroeste mais desenfreado.
Devir-plataforma do mundo
O quarto nó é a plataformização da economia e a
colonização da política pela lógica das redes sociais.
Um aspecto da hegemonia neoliberal das últimas quatro
décadas foi a substituição de políticas antitruste, voltadas a limitar o poder
que monopólios podiam ter de ditar as regras de seus mercados, por uma lógica
inspirada pelos argumentos de Robert Bork e seus acólitos na Universidade de
Chicago, segundo a qual a formação de monopólios não seria um problema
conquanto implicasse preços mais baixos para os consumidores.
Além de ignorar os efeitos sobre trabalhadores e ambiente,
esta doutrina não apenas justificou a leniência com o aumento da concentração
de capital nos mais diversos setores —demonstrou-se particularmente mal
adaptada à economia digital, na qual empresas como Google e Meta podem oferecer
serviços gratuitos
porque seu verdadeiro negócio consiste em vender os dados e a atenção de seus
usuários, e outras, como a Uber, têm financiamento suficiente para operar
no vermelho até dominar seus respectivos mercados.
O problema, é claro, não para aí. Algumas dessas companhias
não são somente monopólios, mas controlam uma fração absolutamente
desproporcional de toda a informação que se produz e se consome no mundo, o que
lhes confere um poder inédito sobre aquilo que se vê e não se vê, bem como
sobre os dados de quem se mostra.
Os
caprichos de Elon Musk à frente do ex-Twitter apenas tornam explícita
uma realidade que já existe há algum tempo: a aparência de funcionamento
"neutro" esconde o fato de que os algoritmos que governam essas
plataformas atendem antes de tudo aos interesses econômicos e simpatias
políticas de seus proprietários.
Esta situação impõe uma série de questões de substância,
como a regulação das plataformas, o desmembramento de monopólios e o combate
ao capitalismo anticompetição. Não é à toa que, como demonstra
a entrada entusiasmada de Elon Musk e da indústria de criptomoedas (entre
outros) na campanha presidencial estadunidense, a extrema direita parece cada
vez mais deixar de ser o plano B para se tornar o plano A do Vale do Silício.
Afinal, ninguém promete descontrole tão absoluto quanto ela.
Mas a plataformização também implica uma série de
consequências para a maneira como se faz política hoje, decorrentes da lógica
das redes sociais. Não se trata somente da prevalência de um certo modelo de
captura da atenção, que favorece conteúdos cada vez mais extremos, da
ubiquidade de processos recursivos de polarização entre diferentes públicos, da
explosão da desinformação, ou
da centralidade de figuras como os trolls.
Pablo Marçal e Nikolas Ferreira, talvez os maiores
vencedores destas eleições, são os dois grandes expoentes atuais de um empreendedorismo que
vive de converter notoriedade digital em capital econômico e político, e
vice-versa.
O que se vê até aqui é que faltam ao sistema eleitoral
proteções adequadas para lidar com essas transformações. E se a eleição
ofereceu alguns sinais positivos de que a esquerda não está completamente
perdida neste novo terreno de disputa —de novo, o avanço do Vida Além do
Trabalho—, convém lembrar que a lógica das plataformas não parece favorecer
apenas conteúdos de extrema direita, mas também uma forma de política centrada
na personalidade de indivíduos isolados, com bases atomizadas e sem instrumentos
de controle sobre o líder —o que parece mais apto a produzir novos tipos de
clientelismo que projetos coletivos de emancipação.
Adiar (ou apressar) o fim do mundo
O quinto nó é, sem dúvida, o maior de todos; trata-se,
obviamente, da crise
ecológica.
Do ponto de vista da substância, sua consequência mais
importante é a impossibilidade de manter a aposta em um crescimento infinito da
economia como maneira de combater a desigualdade no longo (ou longuíssimo)
prazo.
Essa foi a promessa, liberal por excelência, que a maior
parte da esquerda foi obrigada a abraçar a partir do momento em que tirou a
propriedade dos meios de produção de pauta: se não estava mais em questão
distribuir a riqueza existente, só restava fazer o bolo crescer para tentar
reparti-lo melhor.
É isso, justamente, que mais a engasga na hora de assumir
plenamente a gravidade da situação. Reconhecer que não dá para seguir crescendo
para sempre, ainda mais no atual ritmo —e, no caso de países como o Brasil, às
custas do extrativismo desenfreado—, necessariamente forçaria a esquerda a
também reconhecer que, para manter a justiça social na agenda, é
preciso trazer o problema da distribuição da riqueza de volta.
Estamos falando de taxar pesadamente os setores responsáveis
pelas maiores emissões, fazendo com que arquem com o custo da transição
energética sem que possam repassar o mesmo ao consumidor; de restringir a
oferta de crédito privado que financia atividades que aprofundam a catástrofe;
de atacar o rentismo e as altas taxas de lucro para fomentar a expansão e a
descomodificação de serviços públicos básicos, como os cuidados e uma rede de
transporte descarbonizada; da introdução de medidas como fundos de propriedade inclusiva, com objetivo de diluir o
poder de acionistas e aumentar o dos trabalhadores sobre as empresas; e assim
por diante.
A emergência em que nos encontramos deveria oferecer o
contexto ideal para defender esse tipo de medida. A dificuldade de dizer as
coisas com clareza evidencia, contudo, a ligação íntima entre este e o primeiro
nó: o modo como o poder econômico subjuga o poder político hoje faz com que, no
melhor dos casos, os políticos continuem a fingir que a crise está em um futuro
longínquo, e não em um presente de eventos climáticos extremos cada vez mais
comuns —e sigam encenando o "faz de conta" de que o mercado encontrará
uma solução para o problema mesmo após décadas de tempo valioso perdido.
A situação não é menos espinhosa do ponto de vista da forma.
Em primeiro lugar, porque envolve vender a ideia de que é preciso desacelerar e
decrescer a um mundo em que a necessidade e o desejo de crescimento têm valor
de evidência.
Em segundo, porque tampouco se trata de desacelerar ou
decrescer tudo de uma vez: é preciso saber empregar a própria mudança de rumo
como instrumento de promoção da justiça, distribuindo perdas e ganhos de
maneira desigual para que quem tem menos possa ter mais, enquanto quem tem mais
aceite ter menos.
Isso significa, finalmente, ter de convencer diferentes
frações da população mundial a abrir mão de partes de seu padrão atual de
consumo em nome do bem-estar de outras, próximas ou distantes. Não se trata, ao
contrário da caricatura que frequentemente se faz do ecologismo, de pregar um
ascetismo monástico e ranzinza às pessoas, mas de construir o desejo por outros
modos de vida, mais sustentáveis. Ainda assim, o trabalho de convencimento é
inegavelmente árduo.
E aqui chegamos ao sexto e último nó: o
crescimento da extrema direita na última década. Não é só que ele tenha
aumentado a desinformação sobre temas como o aquecimento global ou deslocado o
centro do debate político cada vez mais para a direita, nos afastando das
discussões que realmente precisariam estar acontecendo. Em um certo sentido, é
preciso reconhecer que a extrema direita oferece uma resposta perfeitamente
razoável ao mundo em que vivemos.
Se supomos que a concentração de poder econômico e político
é grande demais para ser modificada; que a democracia de baixa legitimidade
veio para ficar; que haverá cada vez menos emprego formal e proteção social,
cada vez mais riscos e precariedade; que a concentração de capital continuará
como está, e a economia, voltada sempre mais à mera extração de renda,
permanecerá estagnada; que o caminho natural das coisas, especialmente à medida
em que os efeitos da crise ecológica se intensificarem, é o crescimento das
populações excedentes, o recuo da fronteira que separa a vida protegida da vida
descartável, a desintegração social —vem daí o poder dessublimador do discurso
da extrema direita, que parece ser a única a assumir com todas as letras aquilo
que as demais forças políticas disfarçam com palavras enquanto seguem fazendo
com ações.
Assim, a mensagem radical de construir muros, expulsar quem
é diferente, perseguir grupos marginalizados, se dessensibilizar frente ao
sofrimento alheio de defender o "nosso" modo de vida a qualquer custo
parece uma alternativa racional em meio à irracionalidade crescente. Se a
desintegração é inevitável, o melhor a fazer é antecipar-se a ela e se
posicionar da maneira mais favorável.
Decifra-me ou...
Este crescimento acabou por botar a esquerda em xeque.
Incapaz de admitir o tamanho dos desafios com que se depara e frente a uma
força que aposta em acelerar a desintegração, boa parte dela se viu obrigada à
defesa de alguns restos de um estado de coisas em frangalhos em que cada vez
menos gente acredita (as promessas da modernidade e do crescimento econômico, a
forma de uma democracia sempre mais esvaziada, a racionalidade da ciência, a
confiabilidade da mídia tradicional etc.).
Com isso, deixou a via aberta para que a extrema direita se
apresentasse como única intérprete dos sentimentos antissistema.
Não se trata, por óbvio, de tentar emular o vandalismo
conservador dos direitistas. Mas fazer de conta que a policrise atual é passageira, e não o produto de
tendências de longo prazo, e que, portanto, seria possível agarrar-se ao que dá
para proteger enquanto se espera a tormenta passar, quando muito retarda o pior
no curto prazo, e talvez até o acelere no médio.
Essa é a lição que o crescimento de Marine Le Pen sob os
anos de centrismo macroniano nos deixará —e deverá a ser repetida em breve sob
Scholz, Starmer, os democratas norte-americanos e, porque não, o PT.
É evidente que não estamos falando unicamente de "falta
de vontade"; os problemas são objetivamente complexos, talvez até
intratáveis.
No entanto, certamente não será tapando os olhos e apostando
na possibilidade de volta a uma normalidade que já não existe que chegaremos
mais perto de resolvê-los.
Toda proposta que seja realista no sentido de encarar esses
problemas de frente necessariamente parecerá radical, comparada ao que existe
hoje. Não ter medo de dizer aquilo que pode parecer inaceitável agora e
continuar trabalhando para torná-lo aceitável no futuro próximo é a melhor
lição que a esquerda pode aprender com a extrema direita.
O caminho é árduo e sem garantias, mas não começará enquanto
não se assumir que estes são os desafios a enfrentar pelas próximas décadas —o
fato de que seja impossível resolvê-los de imediato não é desculpa para seguir
adiando a construção das condições em que seja possível fazê-lo.
Talvez estes enigmas não possam ser resolvidos; mas a
alternativa a nem sequer tentá-lo é aceitar ser devorado.
*Professor da Universidade de Essex e da PUC-Rio. Autor
de "Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em
Transição" e "Nem Vertical Nem Horizontal: uma Teoria da
Organização" (no prelo)
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