Do O GLOBO — Rio de Janeiro
Morre o poeta e filósofo Antonio Cicero, aos 79 anos
Membro
da Academia Brasileira de Letra desde 2017, ele se notabilizou como um dos mais
célebres letristas da música popular no país
Morreu, nesta quarta-feira (23), o poeta e filósofo Antonio Cicero, aos 79 anos. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2017, ele recebeu, nos últimos anos, um diagnóstico de Alzheimer e vinha tratando problemas neurológicos decorrentes da doença. A morte do acadêmico aconteceu por meio de procedimento de morte assistida na Suíça, onde ele estava ao lado do marido Marcelo Pies. As informações foram confirmadas ao GLOBO pela ABL.
A
última aparição de Antonio Cicero na sede da ABL se deu na última quinta-feira
(17). No dia seguinte, ele embarcou para a Europa, ao lado do marido, e visitou
Paris para se despedir da cidade que tanto admirava, como
detalhou o colunista do GLOBO Lauro Jardim.
Em
comunicado a pessoas próximas, Marcelo Pies relata que o poeta vinha planejando
a eutanásia há um tempo, já que vinha sofrendo muito com os sintomas provocados
pela doença, mas "insistiu que ninguém soubesse", como afirmou. O
imortal da ABL foi cremado. As cinzas serão trazidas ao Brasil pelo viúvo, que
chega ao país na próxima quinta-feira (24).
Carta
de despedida
O
poeta deixou uma carta, com o marido, para que fosse divulgada após sua morte.
Leia abaixo:
Queridos
amigos,
Encontro-me
na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou
insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de
algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas
que ocorreram ontem.
Exceto
os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que
encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons
poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para
ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar
de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível
situação. A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas — senão a
coisa — mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico
até com vergonha de reencontrá-los. Pois bem, como sou ateu desde a
adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou
não sou eu mesmo.
Espero
ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu
os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!
Sucessos
da MPB
Antonio
Cicero se dedicava à poesia desde a infância. Aos 26 anos, ele viu a própria
produção, ainda desconhecida do grande público, ganhar novo fôlego depois de
sua irmã, a cantora e compositora Marina Lima, musicar, sem grandes pretensões,
um de seus textos. Desse momento em diante, o poeta passou a escrever, além de
poemas para serem lidos, letras para as melodias que a irmã — dez anos mais
nova — lhe enviava. Com o tempo, outros cantores fizeram o mesmo. E assim ele se
consagrou como um dos maiores letristas da música popular no país.
Saíram
da caneta de Antonio Cicero dezenas de pérolas e hits do cancioneiro nacional,
entre as quais "Fullgás" e "Pra começar", em parceria com
Marina Lima; "À francesa", feita com Cláudio Zoli; "O último
romântico", sucesso realizado junto a Lulu Santos e Sérgio Souza;
"Alma caiada", gravada por Maria Bethânia em 1976, época em que a
letra foi censurada pela ditadura militar; e "Maresia", na voz de
Adriana Calcanhotto.
Academia
e literatura
Formado
em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Antonio Cicero sempre se dividiu
entre a poesia e a filosofia, a academia e a composição popular, sem realizar
distinções clarividentes entre esses campos vários em suas produções.
— Digo às vezes que sou esquizofrênico, porque é como se eu tivesse dois cérebros diferentes, como se meu espírito se dividisse em dois. Escrevo poesia desde garoto, mas gosto muito de filosofia também. Mas são coisas muito diferentes, filosofia e poesia — afirmou, numa entrevista ao GLOBO em 2017. — No entanto, quando escrevo sobre poesia, não estou escrevendo poemas, estou escrevendo uma coisa que tem muito mais a ver com filosofia, com estética. Mas sempre me preocupei em tentar entender o que é a arte. É uma das minhas preocupações filosóficas.
A
produção poética do escritor ficou marcada, não à toa, pela confluência de
referências clássicas — algo a que se ele dedicou num estudo de pós-graduação
na Georgetown University, nos EUA, onde pesquisou originais, em latim e grego,
de Homero, Píndaro, Horácio e Ovídio — e parceria profícuas com autores
modernos, também com forte relação com a produção musical contemporânea da
época, como Waly Salomão, com quem organizou conferências e publicações.
O poema mais famoso do autor é "Guardar", publicado numa coletânea homônima em 1996. Em 2001, o texto foi incluído na antologia "Os cem melhores poemas brasileiros do século", organizada por Ítalo Moriconi. Diz um dos trechos iniciais do poema: "Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la./ Em cofre não se guarda coisa alguma./ Em cofre perde-se a coisa à vista./ Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado".
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