Como uma obra literária inacabada, Graciliano Ramos não
terminou o mandato em Palmeira dos Índios, mas seus relatórios deixam reflexões
sobre o papel do prefeito
Na gestão em que se dedicaria a equilibrar as contas do
município, enfrentar o desperdício e a ineficiência na administração, extinguir
favores a compadres, pôr fim às extorsões que afligiam os mais pobres e, o mais
inconveniente, relatar de forma clara e honesta o que fez e o que não conseguiu
fazer durante o mandato, o prefeito de Palmeira dos Índios escreve, após o
primeiro ano de trabalho: “Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura
(...) dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos”.
O prefeito impopular, bem como o dono da autoavaliação seca,
irônica e sobretudo literária, era Graciliano Ramos. O futuro romancista
administrou Palmeira dos Índios, próxima a sua cidade natal, Quebrangulo, de
janeiro de 1928 a abril de 1930, e no começo de cada ano escreveu relatórios de
prestação de contas ao Conselho Municipal e ao governo de Alagoas. Desde aquela
época os balanços da prefeitura chamaram a atenção da imprensa pela qualidade
literária, e agora estão reunidos no livro O Prefeito Escritor: Dois Retratos
de uma Administração (Record, 2024).
A leitura de texto tão burocrático, “com
algarismos e prosa de guarda-livros”, interessa quase cem anos depois em
primeiro lugar pelo que se pode antever do estilo do autor de Vidas Secas, já
elogiado pelos contemporâneos dos relatórios. Em um trecho sobre os custos da
administração, por exemplo, o prefeito escreve: “E lá se vão mais de trinta
contos gastos sem uma varredela nas ruas, um golpe de picareta nas estradas, um
professor, mesmo ruim, na Brecha ou no Anum”. Aos leitores atuais de
Graciliano, interessa também o aspecto biográfico dos documentos, que ajudam a
compreender o pensamento do homem que se tornaria preso político mais tarde.
Por fim, para um público mais amplo, a leitura dos balanços interessa hoje
porque muitos dos problemas que o prefeito escritor teve de lidar na Palmeira
dos Índios do fim da década de 1920 o Brasil ainda enfrenta, como o
patrimonialismo e o clientelismo.
No começo do mandato, diz um documento, o prefeito encontrou
obstáculos dentro e fora da prefeitura: “Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos
de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três
meses para levar um tiro”. A dificuldade de arrecadação do município, o que o
autor explica por serem todos, prefeitos e contribuintes, mais ou menos
compadres, foi um dos desafios em que Graciliano teve sucesso durante a gestão,
marcada pelo aumento da receita, mas também pela impopularidade.
Austero com uns, incluindo amigos e familiares, o prefeito
registrou gastos com serviços públicos sanitários e de instrução, investiu nos
subúrbios e aliviou a arrecadação dos mais pobres, estabelecendo “a equidade
que torna o imposto suportável”. “Se eu deixasse em paz o proprietário que abre
as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura,
devia enforcarme.” Quanto aos prestadores de serviço da prefeitura, se não
foram valorizados pelo gestor, ao menos constam nos relatórios exemplos de
indignação com as remunerações pagas a eles (“uns pobres homens que se esfalfam
para não perder salários miseráveis”).
O corte de gastos nem sempre era possível, como no contrato
para o fornecimento de energia elétrica firmado em outra gestão, no qual a
cidade pagava “até a luz da Lua”. “Apesar de ser o negócio referente à
claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”, graceja o prefeito. Se era
obra importante mas prorrogável, ele adiava, a exemplo da construção do
cemitério novo: “Os mortos esperarão mais um tempo. São os munícipes que não
reclamam”. E enterrava os recursos na conservação.
“Aí está, em traços largos, o estado em que se encontra a
Prefeitura de Palmeira do Índios”, conclui o prefeito no primeiro relatório. Do
interior de Alagoas, os documentos chegaram até o editor Augusto Frederico
Schmidt, no Rio de Janeiro, que imaginou que quem escreve um relatório de
prestação de contas com tamanha graça deveria ter um romance na gaveta. E tinha
mesmo. Caetés, o primeiro livro de Graciliano Ramos, foi escrito durante a
gestão, e saiu pela editora de Schmidt em 1933. O romance, aliás, se passa em
Palmeira dos Índios, e tem como protagonista um guarda-livros que deseja ser
escritor e fazer parte da elite social da cidade.
Como uma obra literária inacabada, Graciliano não terminou o
mandato, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito, esse
cargo cada vez mais esquecido em relação às pautas de política nacional que
dominam as conversas nos ônibus e padarias, mas fundamental para o lugar onde a
vida acontece, ou seja, o município.
Matando-lhe “o bicho do ouvido”, as reclamações fizeram
parte do começo ao fim da gestão do escritor, inclusive colaborando para a
renúncia. Mas a indiferença da população à política local não ajudaria
Graciliano a construir uma cidade mais próspera e justa. Pelo contrário, o
prefeito escreve: “Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas,
quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão”. A apatia
política, em vez disso, tende a buscar soluções tão fáceis quanto falsas, não se
importando em destruir o que não afeta mais. É melhor que reclamem.
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