domingo, 27 de outubro de 2024

POSSIBILIDADE DE KAMALA PERDER É PESADELO

Dorrit Harazim, O Globo

E se a candidatura democrata implodir ante Trump da mesma forma que Hillary desmoronou de última hora em 2016?

Onde foi parar a euforia esperançosa que brotara no Partido Democrata dos Estados Unidos no verão de 2024? Durou fullgás por três meses, a partir da sofrida, tardia, substituição do octogenário Joe Biden pela energética Kamala Harris na disputa pela Casa Branca. À época, a corrida eleitoral parecia ter readquirido alguma sanidade em meio à aberração da maior potência econômica e militar do planeta voltar a ter Donald Trump no páreo.

Na Convenção Democrata de agosto, Kamala foi recebida com alívio — não havia tempo para a frente ampla formada de emergência testar alternativas. Kamala saíra-se bem no primeiro, único e temido debate com Trump, até porque o adversário se mostrara particularmente incoerente naquele confronto. O vigor físico da democrata, que também dá plantão duplo como vice-presidente do país, contrastava com o peso (em quilos e idade) do adversário.

Eram alvissareiras as adesões históricas que Kamala foi recebendo ao longo da campanha. De forma participativa ou privada, obteve a adesão de quatro dos cinco ex-presidentes ainda vivos, democratas e republicanos. A elite acadêmica e cultural do país, a indústria do entretenimento de Hollywood e o Vale do Silício de San Francisco eram favas contadas. Além do esperado foi o apoio de 23 prêmios Nobel de Economia, além de outros 82 ganhadores do Nobel de áreas científicas. Na grande imprensa liberal americana, capitaneada pelo New York Times, não deveria haver deserções. Mas houve, e ela foi gritante.

Na última sexta-feira, faltando apenas 11 dias para a eleição, o publisher do outrora combativo e celebrado Washington Post comunicou que, pela primeira vez em décadas, deixaria de endossar qualquer candidato à Casa Branca. Dia sombrio para o jornalismo independente. Segundo informação assinada por dois repórteres do jornal, um editorial de endosso a Kamala já estava pronto, mas “a decisão de não publicá-lo foi do dono do Post—o fundador da Amazon, Jeff Bezos”. Vale lembrar que, durante o primeiro mandato de Trump, o então presidente considerava “inimigos internos” a grande mídia não alinhada a seus caprichos, portanto também o matutino da capital e seu proprietário. Sobrou para a Amazon de Seattle: por pressão da Casa Branca, o Pentágono cancelou um contrato de US$ 10 bilhões com a gigante do e-commerce.

A decisão de Bezos aponta para a reversão de expectativas que tem tirado o sono da campanha de Kamala: e se a candidatura democrata implodir ante Trump da mesma forma que Hillary Clinton desmoronou de última hora em 2016? No pleito de oito anos atrás, o índice de rejeição à Sra. Clinton era altíssimo mesmo entre partidários — ela acabou recebendo o menor número de votos populares do Partido Democrata desde a virada do milênio. Além disso, sofreu um mal-estar em público pouco antes da eleição e ainda enfrentou candidaturas alternativas que, somadas, alcançaram 4,8% da votação total.

Em comum Hillary Clinton e Kamala Harris têm apenas o fato de serem mulheres — o que é imenso quando ambientado na cultura do macho e do facho turbinada por Trump. De resto, as diferenças são colossais, e a principal delas terá sua prova na terça-feira 5 de novembro: enquanto a rejeição a Hillary vinha de eleitores que a conheciam demais, o eleitorado de Kamala tem a sensação de conhecê-la de menos. Incerteza gera desconfiança. Desconfiança gera medo. E medo é inimigo de convivência democrática.

Até o fechamento deste texto, a pesquisa nacional do New York Times/Siena College permanecia impassivelmente dividida: 48% a 48% — isso, apesar de o país ter passado por um dos trimestres mais tumultuados de sua história política, com duas tentativas de assassinato contra Trump, duas guerras com envolvimento militar americano em curso, e os dois candidatos derramando centenas de milhares de dólares nos sete dos 50 estados que decidirão o embate.

Simon Schama não é um historiador qualquer — bastaria citar sua seminal crônica da Revolução Francesa (“Cidadãos”), entre tantas outras obras sobre arte, escravidão, liberdade e o povo judeu. Pois foi esse intelectual britânico, cujo estilo literário costuma ser admirado, que recorreu à plataforma X de Elon Musk para desabafar seu inconformismo em linguagem de cidadão comum:

— Mesmo vivendo nos Estados Unidos há 40 anos, devo ser ingênuo por estar chocado com o fato de que, para quase metade dos eleitores, a gritante desintegração de coerência em Trump, o abuso maligno, o mentir diário, o desprezo pela Constituição, o apaziguamento a ditadores não representam o menor impedimento para que seja eleito presidente e lhe sejam entregues os códigos nucleares. Milhões, portanto, de fascistas e tolos.

Que tempos!

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