E se a candidatura democrata implodir ante Trump da mesma
forma que Hillary desmoronou de última hora em 2016?
Onde foi parar a euforia esperançosa que brotara no Partido
Democrata dos Estados Unidos no
verão de 2024? Durou fullgás por três meses, a partir da sofrida, tardia,
substituição do octogenário Joe Biden pela
energética Kamala Harris na disputa pela Casa Branca. À época, a corrida
eleitoral parecia ter readquirido alguma sanidade em meio à aberração da maior
potência econômica e militar do planeta voltar a ter Donald Trump no
páreo.
Na Convenção Democrata de agosto, Kamala foi recebida com
alívio — não havia tempo para a frente ampla formada de emergência testar
alternativas. Kamala saíra-se bem no primeiro, único e temido debate com Trump,
até porque o adversário se mostrara particularmente incoerente naquele
confronto. O vigor físico da democrata, que também dá plantão duplo como
vice-presidente do país, contrastava com o peso (em quilos e idade) do
adversário.
Eram alvissareiras as adesões históricas
que Kamala foi recebendo ao longo da campanha. De forma participativa ou
privada, obteve a adesão de quatro dos cinco ex-presidentes ainda vivos,
democratas e republicanos. A elite acadêmica e cultural do país, a indústria do
entretenimento de Hollywood e o Vale do Silício de San Francisco eram favas
contadas. Além do esperado foi o apoio de 23 prêmios Nobel de Economia, além de
outros 82 ganhadores do Nobel de áreas científicas. Na grande imprensa liberal
americana, capitaneada pelo New York Times, não deveria haver deserções. Mas
houve, e ela foi gritante.
Na última sexta-feira, faltando apenas 11 dias para a
eleição, o publisher do outrora combativo e celebrado Washington Post
comunicou que, pela primeira vez em décadas, deixaria de endossar qualquer
candidato à Casa Branca. Dia sombrio para o jornalismo independente. Segundo
informação assinada por dois repórteres do jornal, um editorial de endosso a
Kamala já estava pronto, mas “a decisão de não publicá-lo foi do dono do Post—o
fundador da Amazon, Jeff Bezos”.
Vale lembrar que, durante o primeiro mandato de Trump, o então presidente
considerava “inimigos internos” a grande mídia não alinhada a seus caprichos,
portanto também o matutino da capital e seu proprietário. Sobrou para a Amazon
de Seattle: por pressão da Casa Branca, o Pentágono cancelou um contrato de US$
10 bilhões com a gigante do e-commerce.
A decisão de Bezos aponta para a reversão de expectativas
que tem tirado o sono da campanha de Kamala: e se a candidatura democrata
implodir ante Trump da mesma forma que Hillary Clinton desmoronou de última
hora em 2016? No pleito de oito anos atrás, o índice de rejeição à Sra. Clinton
era altíssimo mesmo entre partidários — ela acabou recebendo o menor número de
votos populares do Partido Democrata desde a virada do milênio. Além disso,
sofreu um mal-estar em público pouco antes da eleição e ainda enfrentou
candidaturas alternativas que, somadas, alcançaram 4,8% da votação total.
Em comum Hillary Clinton e Kamala Harris têm apenas o fato
de serem mulheres — o que é imenso quando ambientado na cultura do macho e do
facho turbinada por Trump. De resto, as diferenças são colossais, e a principal
delas terá sua prova na terça-feira 5 de novembro: enquanto a rejeição a
Hillary vinha de eleitores que a conheciam demais, o eleitorado de Kamala tem a
sensação de conhecê-la de menos. Incerteza gera desconfiança. Desconfiança gera
medo. E medo é inimigo de convivência democrática.
Até o fechamento deste texto, a pesquisa nacional do New
York Times/Siena College permanecia impassivelmente dividida: 48% a 48% — isso,
apesar de o país ter passado por um dos trimestres mais tumultuados de sua
história política, com duas tentativas de assassinato contra Trump, duas
guerras com envolvimento militar americano em curso, e os dois candidatos
derramando centenas de milhares de dólares nos sete dos 50 estados que
decidirão o embate.
Simon Schama não é um historiador qualquer — bastaria citar
sua seminal crônica da Revolução Francesa (“Cidadãos”), entre tantas outras
obras sobre arte, escravidão, liberdade e o povo judeu. Pois foi esse
intelectual britânico, cujo estilo literário costuma ser admirado, que recorreu
à plataforma X de Elon Musk para desabafar seu inconformismo em linguagem de
cidadão comum:
— Mesmo vivendo nos Estados Unidos há 40 anos, devo ser
ingênuo por estar chocado com o fato de que, para quase metade dos eleitores, a
gritante desintegração de coerência em Trump, o abuso maligno, o mentir diário,
o desprezo pela Constituição, o apaziguamento a ditadores não representam o
menor impedimento para que seja eleito presidente e lhe sejam entregues os
códigos nucleares. Milhões, portanto, de fascistas e tolos.
Que tempos!
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