Trump detona o sistema multilateral e impõe uma
reciprocidade com critérios definidos por Washington
Ao mandar sua administração preparar a adoção de ‘tarifas
justas e recíprocas’ com todos os principais parceiros comerciais dos EUA,
Donald Trump zerou o jogo para na prática recomeçar uma rodada global de
reduções tarifárias em favor dos produtores americanos.
Estão lançadas as bases da ‘Rodada Trump’, que ignora as
regras internacionais. A maior potência do mundo decide bilateralizar todas as
relações, num jogo que é assimétrico. Quem tentar resistir vai sofrer a
truculência com alta de tarifa para seus produtos ao entrar nos EUA.
Desde seu primeiro mandato, Trump reclamava
de tarifas de importação desiguais, sem levar em conta que elas foram resultado
de barganhas entre os países em acordos internacionais em que uns ganham de um
lado e outros em diferentes setores. Referia-se repetidamente às tarifas para
carros, sobre os quais os EUA impõem alíquotas de 2,5%, mas os carros
americanos enfrentam uma taxa de 10% na UE e de 25% na China. Por isso, a
insistência de reciprocidade, para aumentar as tarifas até o nível cobrado por
seus parceiros comerciais.
Essa exigência detona na prática não uma regra, e sim a
essência mesmo do sistema comercial global, que é o princípio da “Nação Mais
favorecida” (NMF, na sigla em inglês). Por ela, qualquer vantagem comercial
concedida por um membro da OMC a qualquer parceiro comercial deve ser estendida
imediata e incondicionalmente a todos os outros membros. Se um país impõe
alíquota de 25% sobre um parceiro, ou a reduz, não importa, a medida deve ser
aplicada a todos, por exemplo.
O que Trump decide fazer agora é buscar reciprocidade
diferente com cada país, o que ele chama de ‘um sistema belo e simples’’ . A
tarifa será determinada unicamente pela administração Trump e com base em seus
próprios critérios, como notou o jornal New York Times.
Incluirá não apenas as tarifas que os outros países cobram
dos EUA, mas também as taxas que eles aplicam sobre produtos estrangeiros,
subsídios que fornecem a suas indústrias, suas taxas de câmbio, regulações
nacionais que eventualmente afetem interesses americanos e outras medidas.
A Casa Branca informou à imprensa que vai ser dada aos
outros países ‘a oportunidade para negociar’ os níveis tarifários que eles vão
enfrentar para exportar para os EUA. Em Genebra, importante fonte falava em
‘fim da OMC’, refletindo um sentimento propagado na cena comercial com a
impotência e irrelevância da entidade.
Quem sentar na mesa com os americanos vai preparado para
baixa de suas tarifas. Quem não aceitar fazer concessões, entra na retaliação
de Washington com taxas mais altas sobre seus produtos.
O Departamento do Comércio e o USTR, a agência de
representação comercial americana, terão 180 dias para avaliar se são
necessárias ‘medidas corretivas’ para garantir as chamadas relações recíprocas.
Mas Howard Lutnick, nomeado por Trump para secretário de Comércio, antecipou
que já no dia 1º de abril completará o estudo, para Trump impor imediatamente
ações contra os parceiros, se decidir assim.
Para certos analistas, a ‘Rodada Trump’ será menos pior que
o que aconteceu em 1980 quando os EUA, na presidência de Ronald Reagan, impôs o
sistema de ‘Restrições Voluntárias à Exportação’ para limitar a entrada de
produtos do Japão, como automóveis, pela tamanho da distorção.
Desta vez, com Trump, dependendo de como os países vão
reagir, pode incentivar choque tarifário em países que realmente necessitam de
uma abertura. Uma importante fonte dá o exemplo do Brasil, que poderia usar a
negociação para cortar mais alíquotas de importação inclusive para ajudar no
combate à inflação.
De outro lado, Trump frisou ontem que a reciprocidade que
vai exigir dos parceiros beneficiará os produtores agrícolas americanos.
Visivelmente, ele pensa no que obteve nas negociações com a China em 2020,
depois de ter aumentado tarifas contra produtos chineses.
Sob pressão, Pequim aceitou um acordo pelo qual se
comprometeu a importar US$ 32 bilhões a mais de produtos agrícolas americanos
em dois anos. Incluía oleaginosos, carne, cereais, algodão, frutos do mar.
Outras 17 medidas completavam o acordo.
Achar agora que, na rivalidade EUA-China, o mercado chinês
vai cair mais no colo brasileiro pode resultar numa forte decepção.
Em Brasília, fontes esperavam ver primeiro o tamanho da
encrenca que Trump estava inventando, para depois o governo construir sua
reação.
Na semana passada, em discurso na Fundação Getúlio Vargas, o
ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, manifestou preocupação com a
tentação de desmonte da ordem ‘não raro nas próprias praças em que ela foi
concebida e que mais se beneficiaram dela’ – sem citar os EUA.
‘O noticiário recente no campo comercial – com uma profusão
de medidas protecionistas e de intimidação unilateral por meio de tarifas –
coloca em evidência esse processo’, afirmou ele. ‘Estamos diante das
consequências concretas da crise prolongada da Organização Mundial do Comércio
e da paralisia do seu sistema de solução de controvérsias’.
Para o ministro, ‘certo tipo de arranjos bilaterais,
trilaterais e plurilaterais de livre comércio – persistentemente alardeados
como alternativa ao avanço multilateral na área comercial – não tem dado provas
de constituir melhor opção em matéria de previsibilidade’.
Ao contrário, disse ele: ‘pode expor ainda mais alguns de
seus signatários à vulnerabilidade’.
‘Traçando esse quadro na área do comércio, pretendo apenas
ilustrar uma tendência mais ampla’, acrescentou. ‘Projeta-se sobre a ordem – ou
ameaça convertê-la em desordem – o espectro da lei do mais forte’.
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