Mestre, ídolo e nosso grande cineasta e pensador, vá em
paz e leve seu brado de liberdade para onde você for.
É uma sensação muito estranha a de perceber que os
personagens que nos acompanharam por tantos anos vão aos poucos desaparecendo
de nossas vidas. Hoje, o grande mestre do cinema Cacá Diegues nos deixou. Ficou
um vazio no cinema brasileiro, ficou um vazio em mim.
Ele, que não só foi o responsável por colocar no mundo
filmes extraordinários, como Xica da Silva, Dias melhores
virão, Orfeu e tantos outros, mas que acabou se tornando peça
importantíssima na minha vida, uma vez que foi um dos protagonistas da minha
tese de doutorado. Nela, tentei explicar (e acho que consegui) como se deu o
surgimento do Cinema Novo, maior movimento cinematográfico da história do nosso
cinema, a partir de um viés intelectual e político. E para abrir meu longo texto,
escolhi uma frase escrita justamente por Cacá Diegues, que me pareceu a mais
precisa, criativa e divertida: "Não ocorre a ninguém pensar que, certa
noite, Leonardo, Rafael e Michelangelo tenham se encontrado numa taverna da
Toscana e decidido lançar um movimento artístico, a que alguém de passagem
sugeriu chamar de Renascimento. Mas foi assim que nasceu o Cinema Novo".
Essa frase foi extraída de um de meus
companheiros constantes de tese, o livro Vida de cinema — antes, durante e
depois do Cinema Novo, publicado por Cacá em 2014. No entanto, como uma típica
doutoranda, não me contentei só com o livro e escrevi para o mestre para
perguntar-lhe sobre o filme Arraial do Cabo (1959), de Mário Carneiro
e Paulo César Saraceni, que era um dos meus objetos de estudo. Qual não foi
minha surpresa, quando recebo uma resposta com uma foto da sua primeira crítica
cinematográfica generosamente anexada.
O artigo tinha o título O cinema do Arraial do
Cabo e foi publicado na revista Arquitetura em outubro de 1961.
Lá, o jovem Carlos Diegues analisava o curta-metragem carioca e exaltava a nova
fase do cinema brasileiro. Além do artigo, ele me garantiu que eles, os
cinemanovistas, sabiam àquela época que Arraial seria uma das
primeiras bandeiras do Cinema Novo. Colocou-se à disposição para o que fosse
necessário. Eu, claro, aproveitei! Descobri, então, por ele, que o outro filme
sobre o qual eu pesquisava, Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, era
figurinha fácil e obrigatória no circuito dos cineclubes. Fiquei encantada por
tanta generosidade.
Cacá Diegues começou sua vida participando do cineclube da
PUC-RJ e logo se envolveu com os movimentos estudantis, ingressando no Centro
Popular de Cultura (CPC), ligado à União Metropolitana dos Estudantes (UME).
Realizou seu primeiro filme em 1961, junto com seu amigo cinemanovista David
Neves. O curta se chamava Domingo e foi filmado em 16mm, financiado pelo
Departamento de Produção da GEC — UME. Naquela época, do alto dos seus 21 anos,
Cacá — que ainda assinava Carlos — já era um crítico cativo do jornal O
Metropolitano, derramando, por ali, sua visão renovada e esperançosa.
O primeiro filme profissional foi parido ali mesmo no seio
do CPC, em 1962, Escola de samba Alegria de Viver. Um curta-metragem que
fazia parte do longa Cinco vezes favela, filme emblemático dos primeiros
tempos do Cinema Novo. Em 1964, o já não tão inexperiente cineasta cruzou o
oceano, e foi apresentar seu belíssimo Ganga Zumba no Festival de
Cannes, junto com Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos e Deus e
o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Que ano foi aquele! Golpe de Estado
acontecendo aqui e a legitimação do Cinema Novo acontecendo lá com a exibição
de três filmes brasileiros em um dos mais festivais de maior prestígio no
mundo.
Aos poucos, Cacá foi amadurecendo como crítico e cineasta,
tornando-se um dos expoentes não apenas do Cinema Novo, mas do cinema
brasileiro "tout court". Em 1978, porém, devidamente legitimado e
respeitado no universo cinematográfico, viu-se muito cerceado em suas
criações e criticado por não seguir à risca a doutrina da esquerda. Cunhou
então o termo "patrulha ideológica" para designar o exagero — quase
censura — que alguns jornalistas ligados ao PCB (até então clandestino naquele
momento) estavam exercendo em várias áreas da cultura. A missão desses
formadores de opinião era, para ele, a de desqualificar qualquer produto
cultural que não estivesse alinhado politicamente aos seus pensamentos. O que,
para ele, era um descalabro, uma vez que sempre batalhou pela liberdade e pela
democracia, como todo cinemanovista que se preza.
Cacá Diegues, mestre, ídolo e nosso grande cineasta e
pensador, vá em paz e leve seu brado de liberdade para onde você for.
*Historiadora e crítica de cinema. Doutora em história e
estética do cinema pela Universidade de Lausanne, Suíça


Nenhum comentário:
Postar um comentário