Brutalidade promove regressão ao isolamento num planeta
interligado, que sofre os efeitos da hiperconectividade
Se você acha que o tema é pedante — afinal, sou cancelado em
alguns lugares —, experimente vestir uma roupa pelo avesso. Faça como eu, que
vesti uma suéter pelo avesso nos Estados Unidos, país onde o mind your own
business (cuide-se e não me encha o saco!) é dominante, e um colega que jamais
me dera um humilde “bom-dia” parou-me no corredor para a advertir-me que eu
estava com a veste pelo avesso!
— Você deve estar só... — disse em seguida, com voz
tranquilizadora porque sabia o que significava estar sem o outro que nos ama,
ajuda e desentorta...
O pai de um amigo foi internado com ataque
cardíaco. Aos 88 anos, ele sofre de Alzheimer e
foi socorrido num hospital público desenhado para mal atender pobre e preto.
Depois dos rituais que Erving Goffman chamou de degradação e despersonalização,
ficou ansioso e agressivo. Quando arrancou os acessos colocados em seus braços
e tentou fugir, pois imaginou que havia sido preso, foi preciso amarrá-lo na
cama — o que, obviamente, confirmou sua fantasia. Fantasia que se explicava
porque a internação é uma poderosa inversão. Exige o controle e a neutralização
dos elos emocionais rotineiros, produzindo o mesmo sentimento de vestir uma
roupa pelo avesso. Não é banal substituir pessoas amadas por médicos e
enfermeiros impessoais, que olham a doença mais que o doente, numa — reitero —
poderosa inversão. A doença, como certos rituais de passagem, nos leva a um
comportamento invertido.
Agitadíssimo, o pai de meu amigo ficou por três dias na
emergência tentando escapar e dando imenso “trabalho” à mulher e aos filhos.
Mas, quando sua única filha veio substituir os irmãos, ela promoveu um drama e
apaziguou as aflições do pai que se considerava prisioneiro. A moça não usou
remédio ou oração. Usou um poderoso mecanismo ritual que sociólogos
comparativos como Goffman, Turner e Lévi-Strauss conhecem e estudam: a inversão
que usa o isolamento obrigatório como agente de mudança, cura e transformação.
Assim que chegou ao quarto, a filha comunicou ao aflito pai
que ela — e não ele — era a doente aprisionada e ele o livre visitante!
— Veja, papai. Estou amarrada depois do tombo que tomei. Sou
grata por ter você ao meu lado, cuidando de mim...
O poder dos avessos — triviais nos ritos de passagem e nos
cerimoniais de reversão político-social como o carnaval,
conforme estudei em meu livro “Carnavais, malandros e heróis”, de 1979 — serve
como solução para estados de angústia ou perigo, como revelam a literatura, o
drama e os ritos.
Assim foi a noite dessa família aqui em Niterói. O mundo,
entretanto, treme com as inversões de Donald Trump. Como um poderoso bruxo
autocrático ranzinza, ele focaliza o lado perigoso e ambíguo das trocas. Pois,
como revelou Marcel Mauss, trocar implica três, e não apenas as duas fases de
dar e receber. Na reciprocidade de que tanto se fala sem saber, trocas de todo
tipo implicam dar, receber e retribuir. Essa é a base da solidariedade que,
paradoxalmente, nos obriga a retribuir os favores e obséquios que formam as
cordas mais profundas da vida social. Dar, receber e retribuir com justiça
constituem o cerne das sociabilidades e dessas misteriosas imposições do todo
sobre as partes; da moralidade, do bem-estar e daquilo que chamamos de paz
sobre a ansiedade, o primitivismo e a arrogância. Esses valores têm
caracterizado as ações do presidente americano.
A brutalidade irmã de sangue da burrice, prima da ignorância
e mãe do narcisismo promove a regressão ao isolamento num planeta interligado
que sofre os efeitos da hiperconectividade. Brincar de transformar comércio em
guerra acaba em guerra.
No nosso Brasil, que os políticos e juristas recriam dia a
dia, a maior, a mais visível e a mais rotineira inversão é ficar rico,
poderoso, isento de cumprir leis, dedicando-se ao santificado projeto político
de cuidar dos pobres.


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