A fragilidade democrática percebida por Bill Gates é a
fatalidade de um modelo em declínio e um índice de sua inanidade
Com um livro de memórias, Bill Gates vem
a público para se dizer surpreso com a fragilidade da democracia
norte-americana. Achava que fosse condição possível a qualquer país do mundo,
menos ao seu. A declaração é de uma candura também surpreendente, vinda do
bilionário, filantropo, fundador da Microsoft,
alinhado entre os homens mais influentes do século. Mas relevante, porque
espelha o sentimento de metade das pessoas que não votaram na ameaça a essa
democracia. Inaugura a preocupação dos americanos de bom senso com a sua
própria estabilidade institucional.
Um caminho simples para se compreender a
cândida confiança nos alicerces democráticos da América é recorrer ao modo como
isso é figurado no imaginário, matriz de crenças e convicções arraigadas. Com
este foco, vale rever dramatizações de júris no cinema para identificar
sketches ideológicos da democracia liberal em que a verdade na balança da
Justiça parece transparecer na argumentação igualitária dos advogados,
ponderada pelo juiz. Mas uma lógica utilitarista de negócios orienta (nos
acordos) a redução de sentenças. E a garantia última de justiça é a
Constituição, ratificada pela Bíblia. O "grand jury", tribunal de
instrução, é um teatro ideológico, que faz igualdade, princípio ético
constitucional, equivaler politicamente a liberdade, embora sejam conceitos
diferentes.
A crer na encenação hollywoodiana, é nas delegacias e nos
tribunais que se visibiliza a essência da república, uma igualdade pró-forma,
cúmplice da escravidão e da discriminação dos não brancos, encoberta pela
potência material. Já em 1938, Roosevelt temia:
"Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma
força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de
nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país". Ou seja, o
fascismo sempre esteve latente no senso comum.
Por isso, cresceu, reinventando-se no neofascismo moldado
pela IA. A democracia vendida ao resto do mundo, quando não imposta por força
militar, é como o quadro falso de um pintor, sem potência própria, sustentando
numa bolha de ar as ilusões da cidadania americana. Agora, sinais de algo
errado. Parece ter chegado ao ponto de saturação a forma social que abrigava no
formalismo igualitário a formatação do simulacro de liberdade.
Noam Chomsky e
outros críticos argutos sempre suspeitaram da corrida desenfreada para os
extremos como um modo de encadeamento de coisas que só pode resultar em
acontecimentos fatais. A fragilidade percebida por Gates é a fatalidade de um
modelo em declínio, não ainda o estertor, mas um índice de sua inanidade.
Democracia já é palavra incômoda, assim como diversidade e direitos humanos.
Donald Trump emerge
da fossa moral cavada pela saturação. Criatura tóxica, impregna, inundando,
espaços vulneráveis, afinado com Steve Bannon, que autodefine o seu método como "flood
the zone with shit", isto é, "inundar a área com merda". A
proposição expõe o bombardeio circense de ondas escatológicas sobre os cérebros
da "parte errante" da população, imigrantes não brancos, minorias em
busca de voz pública. Um hipercirco a ser levado a sério: Trump não é mero
palhaço, é um elefante "shitting" no picadeiro. A estratégia de
Bannon soa definitiva: sua é a matéria em que se transforma a democracia americana.
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