O presidente Lula mudou seu discurso e afirma que acabará
com a “república dos ladrões de celular”. O ministro da Justiça anuncia, por
seu turno, que apresentará ao Congresso a PEC da Segurança, assim que a cúpula
parlamentar volte do Japão, para onde, no meu entender, não tinha razão para
ir.
Se ainda há tempo ou já passou da hora é uma discussão
inútil como a que se trava no combate ao aquecimento global. Não há escolha.
Uma PEC da Segurança que sintonize os esforços dos governos
federal, estadual e municipal é bem-vinda, assim como a criação de um sistema
nacional. Há muitas resistências em alguns Estados, que temem a presença
federal. Mas, ainda que as resistências sejam vencidas, uma sintonia maior é
apenas um passo.
Um grande problema espera os aliados numa política de
segurança: a desocupação de territórios dominados pelo tráfico de drogas e
milícias.
Desde os primeiros anos do século tenho participado de
esforços para mapear o terreno perdido, uma grande área em que a população não
tem direitos elementares. Ela é obrigada a seguir a lei dos ocupantes, consumir
gás vendido por eles e viajar em transporte alternativo de propriedade dos
bandidos. Os traficantes chegam ao ponto de proibir o uso de certas cores e, em
muitos lugares, promovem um ataque brutal às mulheres que escolhem possuir.
Ao longo dos anos, tenho visto este processo crescer. Ele
cresce no interior da própria cidade, ampliando seu domínio sobre as favelas.
Mas, como é sustentado pelo tráfico de drogas, cresce também sobre cidades
turísticas do Estado.
No Rio de Janeiro, o processo de ocupação de algumas áreas
se estendeu a Angra dos Reis e Paraty. Com características próprias a cada
Estado, o tráfico está presente no litoral de São Paulo.
Tive a oportunidade de documentar a violência urbana em
várias cidades do Nordeste. Observei em Fortaleza um processo, embora
embrionário, semelhante ao do Rio de Janeiro. Existem nas capitais núcleos das
grandes organizações do Sudeste, como Comando Vermelho e PCC. Mas vão surgindo
grupos nativos, como Defensores do Estado, no Ceará, e Família do Norte, no
Amazonas. Quase toda capital tem seu grupo nativo, associado ou independente.
O processo brasileiro é tão famoso no mundo que o próprio
presidente de El Salvador, Nayib Bukele, se referiu a ele, afirmando que não
entendia como um Estado tão poderoso como o brasileiro não conseguia dominar
seu território. Bukele é um defensor da força bruta.
Nem sempre ela é o melhor caminho para a liberação
territorial. As incursões violentas nas favelas brasileiras pecam por uma
incompreensão das leis de um confronto assimétrico. Assim como em tantos outros
lugares, os traficantes usam a população como escudo e conseguem sua simpatia
diante do bombardeio.
A destruição de uma quadrilha com muitos tentáculos já foi
realizada com êxito. Existe um documentário sobre a máfia mostrando como isso
foi possível em Nova York a partir de uma força-tarefa do FBI.
O caso brasileiro é mais complexo, não apenas porque existe
dominação territorial. A simples aniquilação de uma quadrilha que domina uma
área significa apenas que o terreno está limpo para que outra quadrilha ocupe
seu lugar. Sem garantir a permanência do Estado com seus serviços básicos, a
prisão de um grupo inteiro significa apenas enxugar gelo.
A interrogação sobre se não passou da hora de reagir tem
algum sentido quando pensamos na contaminação das instituições. A polícia do
Rio de Janeiro foi comprometida, assim como a própria política e uma fração do
Judiciário. Nas eleições, cerca de 1 milhão de eleitores não podem ser
contatados por candidatos vetados pelo tráfico e pela milícia.
A julgar pelas investigações sobre a execução de um delator
do PCC no aeroporto de Guarulhos, a Polícia de São Paulo também foi atingida
pela infiltração do crime organizado.
No Rio, o processo é tão complexo que Raul Jungmann, quando
foi secretário de Segurança, usou uma imagem do escritor J. Conrad para
descrever a situação: coração das trevas.
Esses são apenas alguns dos grandes problemas de segurança
pública que precisam ser enfrentados. Naturalmente, a frequência do furto de
celulares, os constantes assaltos nas grandes cidades, sobretudo Rio de Janeiro
e São Paulo, são temas mais sentidos e pedem resposta imediata.
No entanto, a tentativa de soluções cosméticas pode trazer
um ligeiro alívio eleitoral e ofuscar os grandes problemas de fundo que
continuam crescendo. No Rio, os tiroteios migraram das favelas para as grandes
vias que atravessam a cidade.
Ou o Brasil recupera seus territórios perdidos para o crime
ou esta singularidade marcará o destino do País, interferindo, inclusive, nas
suas ambições econômicas. Nada mais evidente do que a pressão que as milícias
fizeram sobre uma indústria de equipamento solar, inviabilizando sua
implantação no interior do Rio.
A PEC da Segurança a ser apresentada em abril é apenas um
passo numa longa caminhada. Os grandes projetos operacionais ainda continuam em
aberto, à espera de governos que realmente levam a sério o tema de segurança
pública.
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