Nossos intelectuais estão apartados da política ou
aderiram à intolerância ideológica; é preciso repensar seriamente o Brasil na
nova ordem mundial e oferecer um rumo às elites política e econômica
Em quase todos os momentos importantes da história do
Brasil, alguns intelectuais se destacaram pelo esforço de produzir uma síntese
da realidade do país e inspiraram as suas respectivas gerações a levarem
adiante um projeto de nação. Não foi pouca coisa, num país no qual a primeira
universidade foi criada apenas em 1920, a Universidade do Rio de Janeiro (com a
união da Escola Politécnica à Escola de Medicina e à Faculdade de Direito),
pela necessidade de conceder o título de doutor honoris causa ao rei Alberto I
da Bélgica.
Fazem parte dessa constelação, entre outros, Sérgio Buarque
de Holanda (Raízes do Brasil –1936), com seu estudo sobre a formação do caráter
nacional; Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala –1933); Caio Prado Júnior
(Formação do Brasil Contemporâneo -1942); Celso Furtado (Formação Econômica do
Brasil –1959); Raymundo Faoro (Os Donos do Poder -1958); e Nelson Werneck Sodré
(História da Burguesia Brasileira – 1964).
Esses autores são revisitados quase como um
dever de casa, seja como suporte para novas análises seja para a revisão de
suas teses. Entretanto, hoje, são raros os exemplos de esforço de novas
sínteses sobre o Brasil. Talvez o mais recente e importante seja “História da
riqueza no Brasil: Cinco séculos de pessoas, costumes e governos (Estação
Brasil)”, de Jorge Caldeira, que repensa teses consagradas e reconstrói a
interpretação de nossa economia colonial, do Segundo Império, da República
Velha e da Era Vargas.
A grande maioria dos ensaios e teses acadêmicas, que se
multiplicam, fragmenta a compreensão da realidade brasileira, num momento em
que o país carece de uma elite política, empresarial e intelectual coesa e
capaz de liderar, em bases democráticas, um novo ciclo histórico de
desenvolvimento. O fantasma da modernização autoritária está à nossa espreita,
como no Estado Novo e no regime militar, num momento perigoso da política
mundial.
Seja com a recidiva de Donald Trump na Casa Branca ou a
emergência da Nova Rota da Seda de Xi Jinping, sem falar em Vladimir Putin, no
Kremlin, e Benjamin Netanyahu, em Jerusalém, o autoritarismo hegemoniza a
economia e a política mundial e a democracia no Brasil corre novos riscos.
Nossos intelectuais, porém, estão apartados da política ou aderiram à
intolerância ideológica; pouco se faz para repensar seriamente o Brasil na nova
ordem mundial e oferecer um rumo às elites empresarial e política.
No seu livro “A Mente Imprudente” (Record), o sociólogo Mark
Lilla, da Columbia University (EUA), tenta entender o papel dos intelectuais na
política a partir da trajetória de alguns dos mais importantes pensadores do
século XX. Nele, critica o “teólogo político secular”, aqueles intelectuais que
substituíram a fé religiosa por uma crença quase messiânica em projetos
políticos radicais.
O dogma brando
Lilla argumenta que grandes intelectuais abandonaram o
ceticismo e a prudência no século passado, em favor de visões políticas
redentoras. Esse impulso os levou à negação das limitações humanas e
institucionais, e à legitimação de regimes brutais. Carl Schmitt, um
especialista em direito ainda muito estudado, defendeu um estado sem direito
para boa parte de sua população: o nazista. Martin Heidegger, amante e mentor
da jovem Hannah Arendt, entrou no partido nazista e cortou todas as suas
relações com colegas judeus. Walter Benjamin tinha simpatia ambígua pelo
messianismo e manteve-se fiel ao stalinismo. Michel Foucault flertou com a
Revolução Iraniana de Khomeini; e Jacques Derrida se omitiu frente a regimes
repressivos.
As certezas ideológicas carregam o perigo da intolerância,
critica Mark Lilla. O papel do intelectual não é apenas criar e propagar
ideias, mas também assumir a responsabilidade por seus impactos. “O intelectual
prudente equilibra idealismo e pragmatismo; o imprudente, se entrega a utopias
sem considerar os custos humanos”, compara.
Em 2016, em Paris, Lilla revisitou sua própria obra e
escreveu um posfácio no qual contextualiza o atual ambiente intelectual.
Segundo ele, com o fim da guerra fria, o radicalismo foi substituído por uma
espécie de “dogma brando”, com princípios liberais básicos como o caráter
sagrado do indivíduo, a prioridade da liberdade e a desconfiança em relação à
autoridade pública”. Isso é politicamente democrático, mas carece de
consciência das fraquezas da democracia e da maneira como pode causar
hostilidade e ressentimento.
O “dogma brando” se tornou um caldo de cultura para a
tirania. Não leva em consideração as instituições nem a relação entre o
individual e o coletivo, o chamado bem comum. Sua simplicidade é antipolítica e
o anti-intelectual, o que explica o fato de conquistar muitos seguidores:
fundamentalistas do “estado mínimo” e anarquistas de esquerda, libertários
absolutistas e evangelistas neoliberais, todos politicamente radicais. Suas
diferenças são insignificantes, têm em comum o preconceito em relação ao outro.
O “dogma brando” inspira ignorância e falta de empatia. E o autoengano em
relação a isso tira os intelectuais do caminho.
Foto: Sérgio Buarque de Holanda contribuiu com o seu estudo
sobre a formação do caráter nacional
crédito: Arquivo/Reprodução


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