sexta-feira, 13 de setembro de 2013

NO MOEDOR DE CARNE

Por Alberto Bombig, da revista Época
Com a saída de Gilberto Kassab e a entrada de Fernando Haddad, mudou a decoração do gabinete do prefeito de São Paulo. Saíram os tapetes e cortinas de que Kassab tanto gostava. A alteração valorizou os janelões do Edifício Matarazzo, projetado nos anos 1930 pelo arquiteto italiano Marcello Piacentini –, e também pôs um ponto final nos espirros de Haddad, que sofre de rinite alérgica. A vista dos janelões não mudou. Parte deles dá para o início da Avenida 23 de Maio, criada para ser uma via expressa de alta velocidade ligando as zonas Norte e Sul da cidade. São 8 e meia da manhã e, do 7º andar do edifício, a paisagem que se descortina é um brutal congestionamento. De longe, não é possível ver os pontos de ônibus envidraçados e os relógios digitais, marcas da gestão Haddad. De perto, os motoristas, dentro dos carros, podem apreciá-los com vagar, em todos os detalhes, como se estivessem num museu diante da Mona Lisa. São Paulo é ingovernável? Haddad faz uma pausa e suspira desalentado antes de responder: – Eu diria que é uma cidade complexa. Não chega a ser ingovernável, mas é um desafio como poucos.
De terno cinza-chumbo impecável, Haddad iniciava, na terça-feira 3 de setembro, seu 245º dia no comando da cidade, período curto em relação aos mais de 1.200 dias que ainda faltam para ele concluir o mandato. Mas tempo suficiente para conhecer a encrenca que tem pela frente. O que se vê da janela é uma pequena parte, mas uma parte importante. Os paulistanos sempre culpam o prefeito pelo trânsito – e eles têm a impressão de que o trânsito piorou desde que Fernando Haddad instalou as faixas exclusivas para ônibus na 23 de Maio e em outras vias paulistanas. Essa é uma das razões da queda de popularidade de Haddad. De acordo com a mais recente pesquisa do instituto Datafolha, apenas 18% dos paulistanos consideram a administração Haddad ótima ou boa.
A avaliação ruim não é a única razão dos suspiros de desalento de Haddad. Em oito meses de governo, ele viu a situação financeira da cidade, caótica desde o dia em que assumiu, se agravar ainda mais. A situação piorou quando, forçado a ouvir a voz das ruas, ele teve de suspender o aumento das passagens de ônibus. Outro motivo de estresse é a deterioração do relacionamento com o PT. O partido acha que Haddad quer governar sozinho.
Haddad tem 50 anos, nasceu em São Paulo e é formado em Direito pela USP. Ele caiu no epicentro de um moedor de políticos chamado prefeitura de São Paulo, que já destruiu – ou, na melhor hipótese, arranhou – as biografias de nomes como Luiza Erundina, Paulo Maluf, Celso Pitta, Marta Suplicy e Kassab. Este último deixou a prefeitura em 31 de dezembro de 2012, reprovado por quase 50% da população. Para não falar em José Serra, que largou a prefeitura no meio do mandato, depois de prometer que não o faria. Mesmo considerando esses antecedentes, o desempenho de Haddad nos primeiros 245 dias de governo é preocupante. Isolado, sem dinheiro e às turras com seu partido, ele é o protagonista de um dos inícios de administração mais conturbados da história de São Paulo.
O PT À DISTÂNCIA
“O PT é como mandacaru: não dá sombra nem refresco aos adversários.” A frase é do peemedebista Geddel Vieira Lima. O partido às vezes se porta como o cacto do Nordeste mesmo em relação a seus filiados. Alas importantes do PT paulista estão insatisfeitas com a forma como Haddad conduz sua relação com o partido e com o Palácio do Planalto. E ele, por seu lado, coleciona mágoas acumuladas após decepções com dirigentes petistas, com a presidente Dilma Rousseff e muitos dos ministros dela. “Ao longo da história política recente do país, o PT tem funcionado como um porto seguro ou como inferno para suas estrelas”, disse a ÉPOCA um dirigente petista. O recado é claro: se Haddad não se “enquadrar”, poderá ter o mesmo destino de Luiza Erundina e Victor Buaiz, abandonados pelo partido quando administravam, respectivamente, as cidades de São Paulo e Vitória.
Haddad e o PT começaram a trombar já no final do ano passado. Integrantes do partido reclamaram da montagem do secretariado, com muitos nomes oriundos dos gabinetes de Brasília, onde Haddad ocupou o Ministério da Educação nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência. O maior foco de descontentamento veio logo depois, quando Haddad nomeou engenheiros e técnicos para a maioria das 31 subprefeituras de São Paulo. As subprefeituras, principalmente nos bairros mais populosos das zonas Leste e Sul, são consideradas uma espécie de filé-mignon da gestão, por causa do contato direto com os eleitores. Os políticos do PT ficaram inconformados em perder esse importante instrumento de luta partidária.
Insatisfeitos, os dirigentes zonais do PT paulistano pediram uma reunião com Haddad, que se recusava sistematicamente a recebê-los. Lula interferiu e, no final do mês passado, Haddad aceitou conversar com o grupo. Prometeu abrir um canal de diálogo mensal com as “bases” do partido. Essas mesmas “bases” também não aceitam o novo Conselho da Cidade montado por Haddad, repleto de notáveis como o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa e o cantor e compositor Arnaldo Antunes. Para o partido, ao colocar quadros técnicos nas subprefeituras e ao criar uma instância consultiva aberta para toda a sociedade, é como se Haddad quisesse governar mantendo o PT à distância. Um documento da Executiva estadual do partido a que ÉPOCA teve acesso cobra Haddad explicitamente. Depois de citá-lo, o texto diz: “Vamos precisar muito dos companheiros como militantes e lideranças que vão para as ruas de suas cidades e para o Estado mostrando que é possível fazer diferente dos tucanos”.
A maior trombada pública entre Haddad e o PT ocorreu logo depois da eclosão das manifestações. Na segunda-feira dia 17 de junho, os petistas soltaram uma nota em defesa dos movimentos sociais que tomavam as ruas e pressionavam Haddad a reduzir de R$ 3,20 para R$ 3,00 o preço da passagem no transporte público. O texto também cobrava diálogo da administração pública com os representantes do movimento. Haddad não aceitava de maneira alguma a pressão do Movimento Passe Livre. Ainda não recebera seus líderes, por achar que a reivindicação era injusta. Afinal, o reajuste estava abaixo da inflação acumulada no período, de acordo com o que o próprio Haddad prometera na campanha. Ele também lamentava que o PT não o deixara aumentar as passagens em janeiro, quando vivia a lua de mel dos recém-eleitos. Fez isso a pedido de Dilma, que não queria que o reajuste entrasse no cálculo da inflação.
Nessa mesma segunda-feira, Lula conversou com Haddad e o aconselhou a aceitar a redução. Haddad não se comoveu nem com a admoestação nem com a tentativa de invadir a prefeitura, por parte de manifestantes, na terça-feira dia 18. Ele só se convenceu da necessidade de retroceder na quarta-feira dia 19, quando Eduardo Paes (PMDB), prefeito do Rio de Janeiro, e Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo, lhe informaram que tomariam a medida que os manifestantes pediam – Alckmin em relação ao bilhete de metrô, da alçada do Estado. Não deu tempo de Lula comemorar a decisão de seu pupilo. Ele ficou indignado quando soube que Haddad decidira anunciar a redução da tarifa no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, ao lado de Alckmin.
Para Lula, Haddad foi “engolido” pelos tucanos no episódio. Assessores diretos de Haddad têm outra interpretação. A cena no Palácio dos Bandeirantes foi, segundo eles, uma maneira de mostrar ao PT e a Dilma que Haddad se sentia injustiçado pelo Planalto e pelo partido – e encontrara em Alckmin, também alvo direto das manifestações, um esteio. Quando questionado por ÉPOCA se está isolado no PT, Haddad nega. Ele diz, tucanamente, que é “bom ouvir os partidos de uma maneira geral” e que tem “muito bom relacionamento” com os líderes do PT.
A “HERANÇA MALDITA”
Além do desgaste político, a redução da passagem deixou para o prefeito de São Paulo uma bomba-relógio, programada para explodir nos próximos anos. Segundo cálculos da prefeitura, só em 2014 serão gastos R$ 2,1 bilhões com subsídios ao transporte público, meio bilhão a mais que o previsto por causa da redução. Fazendo uma projeção para todo o mandato, o valor pode passar de R$ 8 bilhões. Parece pouco, comparando com o orçamento de R$ 42 bilhões, o terceiro maior do país. Mas é muito quando confrontado com a realidade das finanças municipais. Segundo Haddad, é seu maior motivo de preocupação.
Ele foi eleito em outubro do ano passado com 56% dos votos válidos contra 44% de seu adversário no segundo turno, o ex-prefeito e ex-governador José Serra, candidato do então prefeito Kassab. Haddad fez, portanto, uma campanha de oposição à gestão anterior. Nada mais óbvio então que, uma vez na prefeitura, ele ocupasse as tribunas, as câmeras e os microfones para denunciar a situação de calamidade que encontrou. Serra, ao assumir a prefeitura em 2005, fez exatamente isso com Marta Suplicy (PT). Mandou os credores da prefeitura organizar uma fila em frente ao Palácio Matarazzo e disse a eles que encontrara uma cidade “quebrada”.
Haddad, no entanto, não pôde fazer isso. Kassab agora era aliado estratégico do PT para 2014. Dilma e Lula ordenaram que ele deveria ser poupado de ataques. Haddad nega que tenha sido orientado a poupar Kassab. “Quando assumi o Ministério da Educação, em 2005, fiz exatamente a mesma coisa, não critiquei ninguém. As dimensões da política avançam dessa forma, é pedagógico”, afirma. Sem fustigar abertamente o antecessor, restou a Haddad a opção de pedir socorro financeiro ao Planalto. Ele fez isso diretamente com Dilma, antes mesmo de assumir o cargo.
A principal reivindicação de Haddad é a mudança no índice de correção da dívida com a União, federalizada em 2000, na gestão de Celso Pitta. Naquele ano, o valor da dívida estava em R$ 11,3 bilhões. Transcorridos 13 anos, o município ainda deve R$ 54 bilhões, apesar de já ter pagado R$ 19,5 bilhões. Segundo os assessores de Haddad, a dívida está indexada pelo índice IGP-DI mais juros anuais de 9%. A proposta paulistana é substituir esse índice pela Selic, a taxa básica de juros. Isso reduziria os juros, proporcionaria uma economia de R$ 1 bilhão por ano e aumentaria a capacidade do município de contrair novos empréstimos.
Na semana passada, Haddad se encontrou com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, em São Paulo. Reforçou seus pedidos para que o governo atenda a suas reivindicações. Da relação com o Planalto, também depende o subsídio à tarifa do transporte. A proposta de Haddad é que o governo federal municipalize a Cide (imposto embutido no valor cobrado pela gasolina), para custear o setor nos municípios. Assim como no caso da dívida, há muita resistência à ideia. Sem isso, ficará muito difícil para Haddad implementar promessas de campanha, como o Bilhete Único Mensal do transporte, a redução do deficit de vagas nas creches municipais e o Arco do Futuro, projeto de urbanização apresentado na campanha com requintes de computação gráfica.
Outro revés financeiro da prefeitura paulistana veio nos Tribunais. Em março, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional parte da Emenda Constitucional 62, que institui o regime especial para pagamento dos precatórios. Segundo Haddad, isso pode representar gastos superiores a R$ 3 bilhões por ano aos cofres da prefeitura. “As finanças de São Paulo estão numa situação muito difícil. Sempre soube do tamanho do problema, agravado pela redução da tarifa do transporte público e pela decisão do Supremo”, afirma.
A SOLIDÃO DO PODER
A reclusão, criticada pela Executiva do PT, talvez seja o traço mais marcante do estilo pessoal de Haddad. Diferentemente do que fizeram Serra e Kassab, ele optou por priorizar os despachos internos às agendas na rua. Nas enchentes do início do ano, perdeu quem esperava vê-lo recém-empossado de galocha e capa de chuva – imagem que marcou a gestão de Kassab a ponto de se tornar hit no YouTube. Haddad preferiu permanecer numa das salas do gabinete, onde dezenas de monitores mostram cenas da cidade e dados sobre pontos de alagamento. “Aqui tenho muito mais controle da situação”, diz.
Reservadamente, petistas da velha guarda definem Haddad como uma Marta Suplicy às avessas. Ela não desperdiçava oportunidades nas ruas, enquanto deixava a gestão a cargo de seus supersecretários Rui Falcão, Valdemir Garreta e Jilmar Tatto – este último à frente da Pasta dos Transportes na gestão Haddad. No trato direto com os vereadores, fica evidente outra característica de Haddad, semelhante a Dilma e completamente diferente de Lula: a cintura dura para o conchavo político. “O Haddad tem um perfil e uma agenda eminentemente de gestor. Quando se reúne com parlamentares, gasta menos tempo fazendo saudação e contando piada e mais tempo argumentando sobre o mérito de um projeto importante para a cidade”, diz seu vice-líder de governo na Câmara, o ex-ministro Orlando Silva (PCdoB). Na hora de negociar com o Legislativo, Haddad escuta mais e é econômico nas falas. Dos 15 partidos e 55 vereadores da Câmara, são poucos os que têm algum acesso a ele, caso de Silva e do líder do governo Arselino Tatto, irmão de Jilmar. Haddad tem maioria folgada na Câmara – apenas 13 vereadores são oposição.
Dentro da prefeitura, a postura muda pouco. O único assessor que goza da intimidade do prefeito fora do Palácio Matarazzo é o secretário dos Negócios Jurídicos, Luís Massonetto, que esteve com Haddad no Ministério da Educação. As famílias Haddad e Massonetto se frequentam e dividem pizzas nos finais de semana. Massonetto é um técnico discreto e, assim como o chefe, de origem acadêmica. Ambos cursaram a Faculdade de Direito da USP. Além de Massonetto, Leonardo Barchini Rosa, secretário de Relações Internacionais e Federativas, a quem Haddad se refere apenas como “Léo”, é outro com acesso direto a ele. Assim como Massonetto, Rosa é oriundo do Ministério da Educação e da universidade. A ele, Haddad confiou a missão de organizar a candidatura de São Paulo para sediar a Expo 2020, uma das prioridades de sua gestão. Com os demais secretários da administração, inclusive os mais graduados do PT, a relação é formal. “Temos sofrido um pouco na mão dele. Ele liga, cobra, pergunta do prazo. Sobre a implantação da rede Wi-Fi nas praças, ele ligou e eu disse que, em outubro, inauguraria as primeiras. Aí, ele me cobrou dizendo que eu tinha dito que era setembro”, afirma o deputado estadual licenciado Simão Pedro, secretário de Serviços.
Haddad chega cedo ao gabinete, cumpre agendas externas, intensas nos últimos dias após as cobranças do partido, depois volta para a prefeitura, para os despachos finais do dia. Só vai embora quando a mulher dele, Ana Estela, dentista e professora da USP, começa a reclamar a presença do marido com os filhos Frederico, de 20 anos, e Ana Carolina, de 12, no apartamento da família no bairro da Vila Mariana. Com jornadas prolongadas, ele tem pouco tempo para seus hobbies, como tocar violão. A relação com Lula esfriou nos últimos meses, mas ainda é constante. Eles conversam regularmente ao telefone e se encontram a cada 15 dias, num seleto grupo comandado por Lula para analisar e discutir a conjuntura política do país e do exterior. “Lula gosta muito dele, mas já disse que não enfiará a mão em cumbuca para salvar o Haddad”, afirma um petista ligado a Lula. Tradução: o poste precisa andar sozinho.
Assim como o presidente dos EUA, Barack Obama, em seu início de mandato, Haddad mantém um distanciamento em relação ao mundo da política. Seus aliados definem essa postura distante como uma espécie de “choque cultural”. Se quiser mesmo se consolidar como o futuro do PT – um partido que, depois de perder quadros importantes no mensalão, precisa mais do que nunca de caras novas –, Haddad terá de fazer como Obama e mergulhar na política. Trata-se de uma longa travessia em águas barrentas – e o desafio de Haddad é evitar sair enlameado, como tantos outros colegas de partido.
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