Por Alberto Bombig, da revista Época
Com a saída de Gilberto Kassab e a entrada de Fernando
Haddad, mudou a decoração do gabinete do prefeito de São Paulo. Saíram os
tapetes e cortinas de que Kassab tanto gostava. A alteração valorizou os
janelões do Edifício Matarazzo, projetado nos anos 1930 pelo arquiteto italiano
Marcello Piacentini –, e também pôs um ponto final nos espirros de Haddad, que
sofre de rinite alérgica. A vista dos janelões não mudou. Parte deles dá para o
início da Avenida 23 de Maio, criada para ser uma via expressa de alta velocidade
ligando as zonas Norte e Sul da cidade. São 8 e meia da manhã e, do 7º andar do
edifício, a paisagem que se descortina é um brutal congestionamento. De longe,
não é possível ver os pontos de ônibus envidraçados e os relógios digitais,
marcas da gestão Haddad. De perto, os motoristas, dentro dos carros, podem
apreciá-los com vagar, em todos os detalhes, como se estivessem num museu
diante da Mona Lisa. São Paulo é ingovernável? Haddad faz uma pausa e suspira
desalentado antes de responder: – Eu diria que é uma cidade complexa. Não chega
a ser ingovernável, mas é um desafio como poucos.
De terno cinza-chumbo impecável, Haddad iniciava, na
terça-feira 3 de setembro, seu 245º dia no comando da cidade, período curto em
relação aos mais de 1.200 dias que ainda faltam para ele concluir o mandato.
Mas tempo suficiente para conhecer a encrenca que tem pela frente. O que se vê
da janela é uma pequena parte, mas uma parte importante. Os paulistanos sempre
culpam o prefeito pelo trânsito – e eles têm a impressão de que o trânsito
piorou desde que Fernando Haddad instalou as faixas exclusivas para ônibus na
23 de Maio e em outras vias paulistanas. Essa é uma das razões da queda de
popularidade de Haddad. De acordo com a mais recente pesquisa do instituto Datafolha,
apenas 18% dos paulistanos consideram a administração Haddad ótima ou boa.
A avaliação ruim não é a única razão dos suspiros de
desalento de Haddad. Em oito meses de governo, ele viu a situação financeira da
cidade, caótica desde o dia em que assumiu, se agravar ainda mais. A situação
piorou quando, forçado a ouvir a voz das ruas, ele teve de suspender o aumento
das passagens de ônibus. Outro motivo de estresse é a deterioração do
relacionamento com o PT. O partido acha que Haddad quer governar sozinho.
Haddad tem 50 anos, nasceu em São Paulo e é formado em
Direito pela USP. Ele caiu no epicentro de um moedor de políticos chamado
prefeitura de São Paulo, que já destruiu – ou, na melhor hipótese, arranhou –
as biografias de nomes como Luiza Erundina, Paulo Maluf, Celso Pitta, Marta
Suplicy e Kassab. Este último deixou a prefeitura em 31 de dezembro de 2012,
reprovado por quase 50% da população. Para não falar em José Serra, que largou
a prefeitura no meio do mandato, depois de prometer que não o faria. Mesmo
considerando esses antecedentes, o desempenho de Haddad nos primeiros 245 dias
de governo é preocupante. Isolado, sem dinheiro e às turras com seu partido,
ele é o protagonista de um dos inícios de administração mais conturbados da
história de São Paulo.
O PT À DISTÂNCIA
“O PT é como mandacaru: não dá sombra nem refresco aos
adversários.” A frase é do peemedebista Geddel Vieira Lima. O partido às vezes
se porta como o cacto do Nordeste mesmo em relação a seus filiados. Alas importantes
do PT paulista estão insatisfeitas com a forma como Haddad conduz sua relação
com o partido e com o Palácio do Planalto. E ele, por seu lado, coleciona
mágoas acumuladas após decepções com dirigentes petistas, com a presidente
Dilma Rousseff e muitos dos ministros dela. “Ao longo da história política
recente do país, o PT tem funcionado como um porto seguro ou como inferno para
suas estrelas”, disse a ÉPOCA um dirigente petista. O recado é claro: se Haddad
não se “enquadrar”, poderá ter o mesmo destino de Luiza Erundina e Victor
Buaiz, abandonados pelo partido quando administravam, respectivamente, as
cidades de São Paulo e Vitória.
Haddad e o PT começaram a trombar já no final do ano
passado. Integrantes do partido reclamaram da montagem do secretariado, com
muitos nomes oriundos dos gabinetes de Brasília, onde Haddad ocupou o
Ministério da Educação nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência.
O maior foco de descontentamento veio logo depois, quando Haddad nomeou
engenheiros e técnicos para a maioria das 31 subprefeituras de São Paulo. As
subprefeituras, principalmente nos bairros mais populosos das zonas Leste e
Sul, são consideradas uma espécie de filé-mignon da gestão, por causa do
contato direto com os eleitores. Os políticos do PT ficaram inconformados em
perder esse importante instrumento de luta partidária.
Insatisfeitos, os dirigentes zonais do PT paulistano pediram
uma reunião com Haddad, que se recusava sistematicamente a recebê-los. Lula
interferiu e, no final do mês passado, Haddad aceitou conversar com o grupo.
Prometeu abrir um canal de diálogo mensal com as “bases” do partido. Essas
mesmas “bases” também não aceitam o novo Conselho da Cidade montado por Haddad,
repleto de notáveis como o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, o diretor de teatro
José Celso Martinez Corrêa e o cantor e compositor Arnaldo Antunes. Para o
partido, ao colocar quadros técnicos nas subprefeituras e ao criar uma
instância consultiva aberta para toda a sociedade, é como se Haddad quisesse
governar mantendo o PT à distância. Um documento da Executiva estadual do
partido a que ÉPOCA teve acesso cobra Haddad explicitamente. Depois de citá-lo,
o texto diz: “Vamos precisar muito dos companheiros como militantes e lideranças
que vão para as ruas de suas cidades e para o Estado mostrando que é possível
fazer diferente dos tucanos”.
A maior trombada pública entre Haddad e o PT ocorreu logo
depois da eclosão das manifestações. Na segunda-feira dia 17 de junho, os
petistas soltaram uma nota em defesa dos movimentos sociais que tomavam as ruas
e pressionavam Haddad a reduzir de R$ 3,20 para R$ 3,00 o preço da passagem no
transporte público. O texto também cobrava diálogo da administração pública com
os representantes do movimento. Haddad não aceitava de maneira alguma a pressão
do Movimento Passe Livre. Ainda não recebera seus líderes, por achar que a
reivindicação era injusta. Afinal, o reajuste estava abaixo da inflação
acumulada no período, de acordo com o que o próprio Haddad prometera na
campanha. Ele também lamentava que o PT não o deixara aumentar as passagens em
janeiro, quando vivia a lua de mel dos recém-eleitos. Fez isso a pedido de
Dilma, que não queria que o reajuste entrasse no cálculo da inflação.
Nessa mesma segunda-feira, Lula conversou com Haddad e o
aconselhou a aceitar a redução. Haddad não se comoveu nem com a admoestação nem
com a tentativa de invadir a prefeitura, por parte de manifestantes, na
terça-feira dia 18. Ele só se convenceu da necessidade de retroceder na
quarta-feira dia 19, quando Eduardo Paes (PMDB), prefeito do Rio de Janeiro, e
Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo, lhe informaram que tomariam a
medida que os manifestantes pediam – Alckmin em relação ao bilhete de metrô, da
alçada do Estado. Não deu tempo de Lula comemorar a decisão de seu pupilo. Ele
ficou indignado quando soube que Haddad decidira anunciar a redução da tarifa
no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, ao lado de Alckmin.
Para Lula, Haddad foi “engolido” pelos tucanos no episódio.
Assessores diretos de Haddad têm outra interpretação. A cena no Palácio dos
Bandeirantes foi, segundo eles, uma maneira de mostrar ao PT e a Dilma que
Haddad se sentia injustiçado pelo Planalto e pelo partido – e encontrara em
Alckmin, também alvo direto das manifestações, um esteio. Quando questionado
por ÉPOCA se está isolado no PT, Haddad nega. Ele diz, tucanamente, que é “bom
ouvir os partidos de uma maneira geral” e que tem “muito bom relacionamento”
com os líderes do PT.
A “HERANÇA MALDITA”
Além do desgaste político, a redução da passagem deixou para
o prefeito de São Paulo uma bomba-relógio, programada para explodir nos
próximos anos. Segundo cálculos da prefeitura, só em 2014 serão gastos R$ 2,1
bilhões com subsídios ao transporte público, meio bilhão a mais que o previsto
por causa da redução. Fazendo uma projeção para todo o mandato, o valor pode
passar de R$ 8 bilhões. Parece pouco, comparando com o orçamento de R$ 42
bilhões, o terceiro maior do país. Mas é muito quando confrontado com a
realidade das finanças municipais. Segundo Haddad, é seu maior motivo de
preocupação.
Ele foi eleito em outubro do ano passado com 56% dos votos
válidos contra 44% de seu adversário no segundo turno, o ex-prefeito e
ex-governador José Serra, candidato do então prefeito Kassab. Haddad fez,
portanto, uma campanha de oposição à gestão anterior. Nada mais óbvio então
que, uma vez na prefeitura, ele ocupasse as tribunas, as câmeras e os
microfones para denunciar a situação de calamidade que encontrou. Serra, ao
assumir a prefeitura em 2005, fez exatamente isso com Marta Suplicy (PT).
Mandou os credores da prefeitura organizar uma fila em frente ao Palácio
Matarazzo e disse a eles que encontrara uma cidade “quebrada”.
Haddad, no entanto, não pôde fazer isso. Kassab agora era
aliado estratégico do PT para 2014. Dilma e Lula ordenaram que ele deveria ser
poupado de ataques. Haddad nega que tenha sido orientado a poupar Kassab.
“Quando assumi o Ministério da Educação, em 2005, fiz exatamente a mesma coisa,
não critiquei ninguém. As dimensões da política avançam dessa forma, é
pedagógico”, afirma. Sem fustigar abertamente o antecessor, restou a Haddad a
opção de pedir socorro financeiro ao Planalto. Ele fez isso diretamente com
Dilma, antes mesmo de assumir o cargo.
A principal reivindicação de Haddad é a mudança no índice de
correção da dívida com a União, federalizada em 2000, na gestão de Celso Pitta.
Naquele ano, o valor da dívida estava em R$ 11,3 bilhões. Transcorridos 13
anos, o município ainda deve R$ 54 bilhões, apesar de já ter pagado R$ 19,5
bilhões. Segundo os assessores de Haddad, a dívida está indexada pelo índice
IGP-DI mais juros anuais de 9%. A proposta paulistana é substituir esse índice
pela Selic, a taxa básica de juros. Isso reduziria os juros, proporcionaria uma
economia de R$ 1 bilhão por ano e aumentaria a capacidade do município de
contrair novos empréstimos.
Na semana passada, Haddad se encontrou com o ministro da
Fazenda, Guido Mantega, em São Paulo. Reforçou seus pedidos para que o governo
atenda a suas reivindicações. Da relação com o Planalto, também depende o
subsídio à tarifa do transporte. A proposta de Haddad é que o governo federal
municipalize a Cide (imposto embutido no valor cobrado pela gasolina), para
custear o setor nos municípios. Assim como no caso da dívida, há muita
resistência à ideia. Sem isso, ficará muito difícil para Haddad implementar
promessas de campanha, como o Bilhete Único Mensal do transporte, a redução do
deficit de vagas nas creches municipais e o Arco do Futuro, projeto de
urbanização apresentado na campanha com requintes de computação gráfica.
Outro revés financeiro da prefeitura paulistana veio nos
Tribunais. Em março, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou
inconstitucional parte da Emenda Constitucional 62, que institui o regime
especial para pagamento dos precatórios. Segundo Haddad, isso pode representar
gastos superiores a R$ 3 bilhões por ano aos cofres da prefeitura. “As finanças
de São Paulo estão numa situação muito difícil. Sempre soube do tamanho do
problema, agravado pela redução da tarifa do transporte público e pela decisão
do Supremo”, afirma.
A SOLIDÃO DO PODER
A reclusão, criticada pela Executiva do PT, talvez seja o
traço mais marcante do estilo pessoal de Haddad. Diferentemente do que fizeram
Serra e Kassab, ele optou por priorizar os despachos internos às agendas na
rua. Nas enchentes do início do ano, perdeu quem esperava vê-lo recém-empossado
de galocha e capa de chuva – imagem que marcou a gestão de Kassab a ponto de se
tornar hit no YouTube. Haddad preferiu permanecer numa das salas do gabinete,
onde dezenas de monitores mostram cenas da cidade e dados sobre pontos de
alagamento. “Aqui tenho muito mais controle da situação”, diz.
Reservadamente, petistas da velha guarda definem Haddad como
uma Marta Suplicy às avessas. Ela não desperdiçava oportunidades nas ruas,
enquanto deixava a gestão a cargo de seus supersecretários Rui Falcão, Valdemir
Garreta e Jilmar Tatto – este último à frente da Pasta dos Transportes na
gestão Haddad. No trato direto com os vereadores, fica evidente outra
característica de Haddad, semelhante a Dilma e completamente diferente de Lula:
a cintura dura para o conchavo político. “O Haddad tem um perfil e uma agenda
eminentemente de gestor. Quando se reúne com parlamentares, gasta menos tempo
fazendo saudação e contando piada e mais tempo argumentando sobre o mérito de
um projeto importante para a cidade”, diz seu vice-líder de governo na Câmara,
o ex-ministro Orlando Silva (PCdoB). Na hora de negociar com o Legislativo,
Haddad escuta mais e é econômico nas falas. Dos 15 partidos e 55 vereadores da
Câmara, são poucos os que têm algum acesso a ele, caso de Silva e do líder do
governo Arselino Tatto, irmão de Jilmar. Haddad tem maioria folgada na Câmara –
apenas 13 vereadores são oposição.
Dentro da prefeitura, a postura muda pouco. O único assessor
que goza da intimidade do prefeito fora do Palácio Matarazzo é o secretário dos
Negócios Jurídicos, Luís Massonetto, que esteve com Haddad no Ministério da
Educação. As famílias Haddad e Massonetto se frequentam e dividem pizzas nos
finais de semana. Massonetto é um técnico discreto e, assim como o chefe, de
origem acadêmica. Ambos cursaram a Faculdade de Direito da USP. Além de
Massonetto, Leonardo Barchini Rosa, secretário de Relações Internacionais e Federativas,
a quem Haddad se refere apenas como “Léo”, é outro com acesso direto a ele.
Assim como Massonetto, Rosa é oriundo do Ministério da Educação e da
universidade. A ele, Haddad confiou a missão de organizar a candidatura de São
Paulo para sediar a Expo 2020, uma das prioridades de sua gestão. Com os demais
secretários da administração, inclusive os mais graduados do PT, a relação é
formal. “Temos sofrido um pouco na mão dele. Ele liga, cobra, pergunta do
prazo. Sobre a implantação da rede Wi-Fi nas praças, ele ligou e eu disse que,
em outubro, inauguraria as primeiras. Aí, ele me cobrou dizendo que eu tinha
dito que era setembro”, afirma o deputado estadual licenciado Simão Pedro,
secretário de Serviços.
Haddad chega cedo ao gabinete, cumpre agendas externas,
intensas nos últimos dias após as cobranças do partido, depois volta para a
prefeitura, para os despachos finais do dia. Só vai embora quando a mulher
dele, Ana Estela, dentista e professora da USP, começa a reclamar a presença do
marido com os filhos Frederico, de 20 anos, e Ana Carolina, de 12, no
apartamento da família no bairro da Vila Mariana. Com jornadas prolongadas, ele
tem pouco tempo para seus hobbies, como tocar violão. A relação com Lula
esfriou nos últimos meses, mas ainda é constante. Eles conversam regularmente
ao telefone e se encontram a cada 15 dias, num seleto grupo comandado por Lula
para analisar e discutir a conjuntura política do país e do exterior. “Lula
gosta muito dele, mas já disse que não enfiará a mão em cumbuca para salvar o
Haddad”, afirma um petista ligado a Lula. Tradução: o poste precisa andar
sozinho.
Assim como o presidente dos EUA, Barack Obama, em seu início
de mandato, Haddad mantém um distanciamento em relação ao mundo da política.
Seus aliados definem essa postura distante como uma espécie de “choque
cultural”. Se quiser mesmo se consolidar como o futuro do PT – um partido que,
depois de perder quadros importantes no mensalão, precisa mais do que nunca de
caras novas –, Haddad terá de fazer como Obama e mergulhar na política.
Trata-se de uma longa travessia em águas barrentas – e o desafio de Haddad é
evitar sair enlameado, como tantos outros colegas de partido.
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