Por Marsílea Gombata, da Carta Capital
Uma leva de documentos inéditos do Serviço Nacional de
Informações (SNI) detalha o período em que a ditadura brasileira, acuada pela
campanha internacional contra a tortura e as prisões de opositores, monitorou
jornalistas e a direção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A instituição,
mostram os papéis de 1976, era considerada pelo regime uma entidade subversiva
e a serviço do Movimento Comunista Internacional, cujo objetivo seria a “agitação
e a desmoralização dos “órgãos de segurança do País no exterior”.
“Esta má fé, caracteriza a posição do seu presidente, Caio
Mário da Silva Pereira, elemento esquerdista e anti-revolucionário, bem como do
seu vice-presidente Heleno Fragoso, militante comunista e notório defensor de
presos subversivos, inclusive, do recém expulso Padre François Jentel, como bem
mostram os prontuários respectivos (Anexo U)”, revela o informe redigido em
português pedestre obtido por CartaCapital. “A representação da OAB, encaminhando
a denúncia dos subversivos presos, é mais uma tática do MCI para desmoralizar e
intimidar os órgãos de segurança, visando à sua neutralização atual e extinção
futura.”
Durante a gestão de Caio Mário da Silva Pereira, lembra o
atual presidente do conselho federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho,
houve deliberadas tentativas de vincular a Ordem ao Poder Executivo,
“especialmente quando os militares tentaram transformá-la em uma espécie de
departamento do Ministério do Trabalho”. “Foi uma reação ao então presidente,
visto até hoje como símbolo de resistência à tentativa de ceifar a
independência da OAB”, explica, antes de ressaltar que Pereira e seu sucessor,
Raymundo Faoro, eram defensores dos direitos humanos, mas não necessariamente
de esquerda. “Se olharmos a literatura do Dr. Caio, vemos que não se tratava de
um comunista. Ele prezava pelos direitos civis, mas também pela propriedade
privada. Faoro tampouco era comunista. Mas em ambas as gestões, na tentativa de
restabelecer a dignidade da pessoa humana, a Ordem buscou revelar o que ocorria
nos porões da ditadura.”
O regime linha-dura de Ernesto Geisel também demonstrava uma
crescente preocupação com jornalistas e outros profissionais liberais, cujas
ações eram monitoradas. Em 13 de março de 1976, uma lista com 127 nomes foi
enviada ao comando do I Exército, juntamente com a documentação relativa aos
“elementos de interesse daquele grande comando”. Nomes como Mino Carta, Milton
Coelho da Graça, Millôr Fernandes, Ziraldo Alves Pinto, Walmor Chagas, Ancelmo
Rezende Gois e Nelson Werneck Sodré compõem a lista. Até um aliado da ditadura,
o empresário Roberto Marinho, não escapou.
O mesmo documento de março de 1976 registra ainda um
episódio que revela a proximidade do dono da Rede Globo com a alta cúpula do
regime. “Roberto Marinho, que inicialmente se mostrou incrédulo, no que se
refere à infiltração comunista no ‘‘complexo – O Globo’’, manifestou ao CMT do
I EX a intenção de demitir 17 (dezessete) jornalistas. Tais elementos foram
denunciados, pessoalmente, pelo = CMT do I EX, a Roberto Marinho, como sendo
elementos do PCB.” Ainda segundo o despacho, as demissões não teriam ocorrido à
época a pedido do próprio comandante do I Exército: “(...) o CMT do I EX
aconselhou a Roberto Marinho a não despedir os jornalistas, a fim de aguardar
os trabalhos de ação psicológica, com o propósito de desmoralizá-los”.
Preso em 1964 e 1975 e integrante do grupo de “elementos”
monitorados, Milton Coelho da Graça foi chamado pelo próprio Marinho, em 1976,
quando deixou o cárcere, para comandar revistas do grupo, entre elas História
do Rock, Vela e Motor e Arte Hoje. Embora não se lembre de demissões por
motivos políticos na editora, no jornal ou mesmo na TV Globo, ele se recorda de
“O Globo estar cheio de agentes responsáveis por passar informações à polícia e
ao serviço secreto”.
Apesar da célebre frase “Dos meus comunistas cuido eu”, dita
por Marinho em 1964 ao general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do
marechal Castello Branco, Coelho da Graça cita uma lista entregue por Magalhães
a diretores de veículos com nomes de jornalistas proibidos de trabalhar na
imprensa, especialmente como redatores responsáveis por finalizar o texto.
“Eles achavam que quem controlava o que saía publicado eram os copydesks”, relembra.
À época, a pressão contra o regime de Geisel ocorria em duas
frentes. Enquanto, no plano interno, os ditadores eram pressionados por
denúncias de tortura e mortes em instalações militares, como escancarado em um
extenso documento elaborado por presos políticos apelidado de “Bagulhão”, no
plano externo, diversas entidades na Europa e nos Estados Unidos condenavam a
tortura.
O mesmo documento que cita a OAB como parte do MCI define a
entidade como uma das responsáveis por engrossar o coro da “‘campanha da
Tortura’ no Brasil, da qual faz parte a denúncia dos subversivos e
representação da OAB”. “Com apoio de D. Hélder Câmara, essa campanha alcançou
repercussão no exterior, onde passou a ser patrocinada pelo Amnesty
International, entidade que assumiu a liderança dessas difamações, visando ao
descrédito do nosso País.” O relatório cita também o Livre Noir –Terreur et
Torture au Brésil, editado em novembro de 1969 na França, o italiano Livro
Bianco – Tortura in Brasil, que data de 1970, além das denúncias de tortura
publicadas no Tricontinental, da Ospaaal (Organização de Solidariedade aos
Povos da Ásia, África e América Latina), e na revista equatoriana Polemica.
Líder ecumênico metodista e coordenador do grupo de trabalho
da Comissão Nacional da Verdade que investiga o papel das igrejas na ditadura,
Anivaldo Padilha lembra que a campanha internacional acuou os militares. “Não
apenas denunciávamos a tortura, mas expúnhamos a falácia do milagre econômico e
demonstrávamos que a tortura era parte de um política de Estado organizada como
instrumento sistemático de interrogatório e meio de aterrorizar a população”,
conta o ex-coordenador da campanha nos EUA. Apesar de a Anistia Internacional
ter se unido ao grupo em 1976, os esforços começaram anos antes, por intermédio
de dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife, que buscava
denunciar a repressão no Brasil. Soma-se a isso o discurso do ex-presidente
norte-americano Jimmy Carter contra as ditaduras na América Latina, ainda
durante a corrida à Casa Branca, em 1976.
O relatório elaborado pelos presos e encaminhado pela OAB ao
ministro Golbery do Couto e Silva, em 26 de novembro de 1975, cita não apenas
métodos de tortura, mas nomes de agentes torturadores. Nele, 35 ex-presos
políticos, entre eles o ex-deputado federal José Genoino e o ex-secretário de
Direitos Humanos Paulo Vannuchi, relatam torturas a que foram submetidos, assim
como prisões de advogados. O texto descreve métodos e instrumentos de tortura,
como a “cadeira do dragão” (cadeira elétrica na qual a pessoa senta nu, com os
pulsos amarrados aos braços da cadeira, e as pernas presas por uma trava),
afogamento, “telefone” (aplicação de pancada com as mãos em concha nos dois
ouvidos ao mesmo tempo), “soro da verdade” (uso de pentotal sódico ou
barbiturato para produzir efeito de depressão gradativa dos centros bulbares),
“tamponamento com éter” (aplicação de compressa embebida em éter na boca,
nariz, ouvidos, pênis, vagina, provocando queimaduras), sufocamento,
“crucificação”, e “injeção de éter” (que pode levar ao necrosamento dos tecidos
atingidos).
Na análise do documento feita pelo SNI a Geisel, os
militares revelam preocupação. “A cada denúncia de ‘torturadores’ ou de
‘desaparecidos’, e que traz como consequência a necessidade de processamento de
dados para a elaboração das respostas esclarecedoras, ocorre, por outro lado,
um surgimento de clima de desestímulo e de certa apreensão entre os componentes
dos órgãos de segurança”, diz um dos informes. No mesmo texto, no qual
confirmam as ordens para se torturar, como no trecho “cabe considerar que os
elementos componentes dos Destacamentos de Operações Internas sempre atuaram no
cumprimento das ordens emanadas dos escalões superiores”, lembram que “as
providências para elaborar a informação sobre a denúncia formulada pela OAB
concorreram para estimular o clima de apreensão”. Uma atmosfera que antevia o
debate sobre a necessidade de punição dos repressores: “O objetivo imediato
visado é o de dar continuidade à campanha no sentido de pressionar os órgãos de
segurança, criando um clima para, no futuro, e, se possível, levar ao banco dos
réus os integrantes mencionados”.
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