Por Cleidi Pereira, Zero Hora
O contraste do olhar sereno com o semblante sério resume a
trajetória de Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto: mesmo diante de
injustiças e dificuldades, ele jamais perdeu a fé e a esperança. Foi assim nos
quatro anos em que esteve preso durante o regime militar, por apoiar a luta
armada contra a ditadura, e nos cinco anos seguintes em que morou na periferia
de Vitória, no Espírito Santo, quando decidiu ficar no Brasil.
Aos 69 anos, o escritor mineiro, religioso dominicano e
assessor de movimentos sociais é hoje reconhecido mundialmente por sua luta
pela justiça social e pelos direitos humanos. Em janeiro, recebeu da Unesco o
Prêmio José Martí, por seu trabalho marcado pela "oposição a todas as
formas de discriminação, injustiça e exclusão".
Frei Betto recebeu ZH no Convento Santo Alberto Magno, no
arborizado bairro Perdizes, zona oeste da capital paulista, onde reside há mais
de 30 anos. Ele fez dois pedidos: que a entrevista não fosse registrada em
vídeo - costuma dizer que o "olho canibal" das câmeras o agride - e
que a repórter, se possível, se adiantasse. A conversa começou com meia hora de
antecedência para que o homem que diz não ter rotina pudesse cumprir
rigorosamente a agenda apertada do dia.
Autor de 57 livros que se define como escritor compulsivo,
Frei Betto tem um perfil que provoca dúvidas. Há quem diga que ele é padre e
filiado a partido político, mas não é e nunca foi nem uma coisa nem outra.
Quando olha para o passado, o frade diz que o cárcere, na verdade, o libertou,
pois serviu como um "grande retiro espiritual e literário".
Participou da criação do PT e, embora classifique os governos Lula e Dilma como
"os melhores da história republicana", não poupa críticas ao partido,
que diz ter sido picado pela mosca azul.
Na entrevista, ele conta como nasceu a amizade de mais de 30
anos com Lula, analisa os 10 anos de governo do PT, conta como conheceu e
indicou Joaquim Barbosa ao Supremo Tribunal Federal (STF) e fala sobre o
pontificado do Papa Francisco.
Leia, abaixo, a entrevista.
ZH - O senhor já escreveu que a "arte de tecer letras"
é a sua forma de administrar a loucura. O que tanto perturba um autor de 57
livros?
Somos seres múltiplos interiormente. Então, a literatura tem
um caráter terapêutico. O Hélio Pellegrino, psicanalista, escritor, poeta e
muito meu amigo, diz que eu não ter enlouquecido nos quatro anos de prisão nem
precisado fazer terapia se deve ao fato de eu ter trabalhado minha dor através
da literatura. Isso é verdade. E até hoje a literatura é o meu refúgio, é a
maneira de administrar os anjos e demônios que me habitam. Por isso, sou um
escritor compulsivo e não posso ficar 48 horas sem escrever alguma coisa que
começo a me sentir mal.
ZH - Quais são as suas técnicas na hora de escrever?
Tenho dois processos. O mais importante é que reservo 120
dias do ano só para escrever. Já sei quais são os dias de 2014 que vou me
afastar de tudo só para escrever. No máximo 10 e no mínimo cinco dias, ao longo
do ano, que, somados, dão 120. Isso é uma prática que vem desde 1987. Segundo
fator é que tenho muita facilidade para escrever graças a minha experiência no
jornalismo. Escrevo no aeroporto, na sala de espera de dentista. Escrevo, aí
mais trabalhando artigos que tenho que preparar para jornais e revistas toda a
semana. Livros não, mais nesses 120 dias que reservo. Sou muito disciplinado
para escrever.
ZH - Nesses 120 dias dedicados à escrita, o senhor costuma
viajar?
É, me isolo, num sítio, fico sozinho, eu mesmo cozinho. E aí
aproveito para fazer aquilo que eu mais gosto: rezar e escrever.
ZH - Como o senhor descobriu a sua vocação religiosa?
Através da JEC, a Juventude Estudantil Católica, um
movimento da Ação Católica, nos anos 60. Os frades dominicanos de Belo
Horizonte eram assessores da JEC. Vários militantes da JEC entraram nos
dominicanos. Nem todos permaneceram, mas vários ficaram empolgados com o
testemunho dos dominicanos. E essa inquietação me veio desde os 16 anos. Entrei
na JEC com 13. Isso eu conto no livro "O Que a Vida Me Ensinou",
publicado este ano pela editora Saraiva. Aos 20 anos, estava na faculdade de
jornalismo e decidi interrompê-la para fazer uma experiência nos dominicanos,
convencido de que não era minha vocação, mas não queria chegar aos 40 anos
pensando que não tive coragem de fazer a experiência. Entrei e já são 48 anos
de vida religiosa. Me sinto muito feliz.
ZH - Em algum momento já pensou em desistir dessa escolha?
Quando trabalhei no teatro e fui assistente de direção de
uma montagem do "Rei da Vela", de José Celso Martinez Corrêa, do
Teatro da Oficina. Descobri que tinha talento para dirigir uma peça, mas ser
diretor de teatro é outro sacerdócio. E sempre dividi a minha vida religiosa
com a minha literatura, mesmo com o jornalismo, mas com o teatro seria
impossível. Então, foi a minha maior tentação.
ZH - Como o senhor lida com o celibato e o voto de castidade?
É muito tranquilo, porque quando você faz o voto, faz
baseado em dois princípios. Primeiro, é um sentimento de que tenho vocação para
isso. Segundo, você faz uma renúncia, mas tem muitas compensações. Por exemplo:
nunca tive saudade do casamento que não tive, dos filhos que não tive. O
celibato me dá muita liberdade. Posso ter amizades sem suscitar ciúme,
apropriação. E isso me convém, é muito bom, sabe? Vejo amigos casados que não
podem ter essa diversidade de amizades que tenho e essa liberdade. Viajo e volto
para casa, mas sei que ninguém está preocupado se vou voltar, o que está
acontecendo. Para mim, é uma libertação.
ZH - O senhor já se apaixonou ou pensou em se casar?
Ao longo da vida, já me apaixonei algumas vezes. Foi uma
experiência muito rica, mas nunca blefei. Da primeira vez, eu coloquei para os
meus superiores - ainda não tinha feito os votos - e eles disseram:
"namora e vê o que você quer". E eu cheguei à conclusão de que o meu
lugar era aqui e não casar com aquela moça.
ZH - Quais são os seus três votos?
Pobreza, castidade e obediência, que eu gostaria que fossem
mudados os nomes. O voto de pobreza deveria se chamar voto de compromisso com a
justiça, porque é um cinismo falar que o religioso é pobre, mas vive numa
estrutura que tem tudo, riquíssima, que o mantém e ele não precisa ter as
preocupações que os comuns mortais tem. Quero saber não é essa pobreza virtual
dele, quero saber se ele tem compromisso com a justiça. Voto de castidade eu
chamaria de voto de gratuidade no amor, quer dizer, você renuncia a um pacto
quase de apropriação, que é o casamento, para ter gratuidade no amor. E o voto
de obediência, que é uma palavra execrável, parece uma relação senhor/escravo,
eu preferiria chamar de voto de fidelidade comunitária, que é um termo mais
bíblico.
ZH - Como nasceu sua amizade com o ex-presidente Lula?
Durante 22 anos, fui responsável pela Pastoral Operária do
ABC, na época do Dom Cláudio Hummes, em 1979. E só no ano seguinte, em um
encontro sindical, em Minas Gerais, conheci o Lula, e aí nasceu a amizade. Depois
passei a frequentar a casa dele.
ZH - Nestes mais de 30 anos de convivência com o ex-presidente,
há algum episódio que mais o tenha marcado?
Quando ele me convidou para ser assessor especial em algo
que tem a ver com a minha trajetória pastoral, que é cuidar dos mais pobres
entre os pobres, que são os famintos. Mas, depois de dois anos de governo,
cheguei à conclusão de que o serviço público não é a minha vocação. E também
porque fui trabalhar no Fome Zero, que era um programa de caráter
emancipatório, e considero o Bolsa Família bom, mas de caráter compensatório. O
Fome Zero era melhor. Discordei - isso descrevi detalhadamente no livro
"Calendário do Poder" - e aí resolvi pegar o meu boné e voltar para
casa. Mas ficou a amizade, tenho apreço, admiração e ele contará sempre com meu
voto.
ZH - Sobre a eleição de Lula em 2002, o senhor começa o livro
"A mosca azul" com a frase: "Ainda bem, meu pai partiu
antes", e diz que ele não suportaria "ver tantos sonhos
esgarçados". O governo Lula lhe decepcionou?
Lula teria condições, no primeiro ano de governo, com todo o
apoio popular que recebeu, de ter feito uma reforma agrária. É uma demanda
histórica, até hoje não cumprida. Estamos com 10 anos de governos do PT, com
todos os avanços que teve, com a inclusão econômica de milhões de brasileiros
miseráveis e pobres, mas não tivemos nenhuma reforma de estrutura. Então, como
meu pai esperava também muito mais, daí essa frase. Penso que o PT trocou um
projeto de Brasil por um projeto de poder. Permanecer no poder passou a ser
mais importante do que criar uma alternativa civilizatória para a nação Brasil.
ZH - Recentemente, ao ser questionada sobre uma possível volta de
Lula à Presidência, Dilma afirmou que ele não iria voltar porque nunca saiu.
Lula foi picado pela mosca azul?
Não acho que Lula foi picado. Muita gente no governo foi, o
PT, como partido foi - embora há muitas pessoas não picadas lá dentro, e o Lula
é uma delas.
ZH - Por que ainda em 2014?
Porque se ela apresentar índices negativos, com o risco de a
Presidência ir para as mãos de outro candidato, o "volta, Lula"
haverá de funcionar.
ZH - Quais os principais acertos do PT nestes 10 anos de governo?
Vinte milhões de famílias, crédito facilitado, hoje ando
pelo Nordeste e não tem mais jegue, tem moto, desoneração da linha branca,
universalização do ensino. Então, esse foi o primeiro grande acerto, inclusão social
e econômica.
O Brasil deixou de ser subserviente frente ao FMI,
Washington, Reino Unido. Dom Pedro II e Lula foram os únicos chefes de Estado
que ousaram ir ao Oriente Médio, porque havia uma pressão americana para que
isso não acontecesse.
Isso é muito importante, quando eu penso que, no governo
FHC, greve da Petrobras foi reprimida com tanques de guerra. E hoje os
movimentos sociais ocupam as ruas. São reprimidos pelas polícias militares, são
estaduais e resquícios da ditadura. O Brasil não deveria ter polícia militar,
deveria ter polícia federal e civil e forças armadas.
ZH - E os erros?
Paradoxalmente, os 10 anos de governo do PT foram 10 anos de
despolitização da sociedade brasileira. Então, os jovens, agora, querem ter
esse protagonismo político, estão ocupando as ruas, querem participar.
Acreditou-se que a política era um privilégio do andar de cima, que as coisas
se resolveriam entre os partidos, numa total indiferença para com o povo, com
os jovens.
Nem a agrária, nem a tributária, nem a política, nem a
previdenciária, nem a de educação, nem a da saúde. E o terceiro é a não redução
da desigualdade social, apesar dos avanços. Segundo o Ipea, dado de outubro de
2013, a desigualdade no Brasil entre os mais ricos e os mais pobres é de 175
vezes, e isso é escandaloso.
ZH - Qual sua avaliação do governo Dilma?
É positiva. Gostaria que ela tivesse feito mais. Por
exemplo, acho que ela falhou muito na questão da reforma agrária, no diálogo
com os movimentos sociais e com a classe política. Mas continuo achando que ela
e o Lula fizeram os melhores governos da nossa história republicana, na questão
da inclusão econômica, inclusão social e, agora, nessa tacada de mestre que foi
o programa Mais Médicos. Ou seja, isso vai quebrar uma série de mitos, de que
os médicos não vão para o interior porque não têm os equipamentos que a lógica
capitalista considera importante.
As pessoas no interior têm recursos fitoterápicos
tradicionais que dispensam esses alopáticos venenosos recomendados pelos
médicos da cidade. Então, creio que isso foi uma revolução, um passo
importantíssimo. Parabéns à presidente Dilma pela coragem.
ZH - Houve alguma resistência na família a sua entrada para a
vida religiosa? Em um dos seus livros, o senhor conta que seu pai dizia que
"filho seu podia ser tudo, menos vestir saia.
Tinha duplo sentido essa advertência dele. Meu pai era um
anticlerical militante, e na minha casa era proibido entrar padre, embora ele
respeitasse totalmente a prática cristã da minha mãe. Minha mãe era uma mulher
de uma visão cristã muito avançada, aberta, mas ele tinha total ojeriza a
igreja e a padre. Depois, ele mudou, a ponto de me apoiar totalmente no fim da
vida, principalmente depois da minha prisão.
ZH - Vocês chegaram a romper?
Sim. Ele foi a última pessoa que soube que eu iria entrar
nos dominicanos. Quando comuniquei isso ele, me disse "nunca mais fale
comigo". E, simbolicamente, ele me enterrou, porque chorou de uma maneira
que nunca ninguém jamais o tinha visto chorar, porque ele nunca enterrou nenhum
descendente. Foi a maior convulsão de choro que ele teve, no dia em que me
disse essa frase. Mas um ano e pouco depois voltamos a nos falar e, aos poucos,
ele foi vendo que os dominicanos, o segmento da Igreja ao qual estou ligado, a
Teologia da Libertação, era muito diferente daquilo que ele havia experimentado
na infância e na juventude.
ZH - Como foi a sua infância em Belo Horizonte?
Foi uma infância extremamente feliz, com muita brincadeira
de rua, muita fantasia. Na época, tínhamos duas grandes vantagens: não havia
medo da rua, a rua não era um lugar perigoso, nem pelo trânsito nem pela
violência; e nós não éramos dependente nem da televisão nem da internet. Então,
com isso, tive uma infância muito lúdica, de muita brincadeira, muito carnaval,
muita piscina - até hoje, o esporte que mais gosto de praticar é a natação.
Tive uma infância realmente saudável.
ZH - O senhor foi vizinho da presidente Dilma Rousseff nessa
época. Vocês eram amigos?
A Dilma, que a gente chamava de Dilminha, porque a mãe dela
é Dilma também, a gente vivia na mesma rua, a Major Lopes. Ela é mais nova do
que eu e era amiga da minha irmã Teresa - somos oito irmãos e eu sou o segundo.
Então, cruzei com a Dilma, mas não cheguei a ser amigo dela. Brinco com a Dilma
que nós somos tri vizinhos, porque mais tarde fomos vizinhos aqui em São Paulo,
no presídio Tiradentes. Ela no pavilhão feminino e eu no masculino. E depois,
pela terceira vez, fomos vizinhos no Palácio do Planalto. Ela ministra de Minas
e Energia e eu assessor do presidente da República.
ZH - Como foi o reencontro no presídio Tiradentes, durante a
ditadura?
No presídio é que fiquei amigo de Dilma, porque o diretor
permitia que eu passasse alguns domingos, com os outros dois frades que estavam
comigo, o Ivo e o Fernando, para o pavilhão feminino para fazer uma celebração
dominical. Então, a gente levava recado dos homens para as mulheres, das
mulheres para os homens. E algumas noites fazíamos uma fantástica serenata,
porque o que se falava de um lado da parede se escutava muito bem do outro.
Além do que essa parede, que era fronteira entre os dois pavilhões, tinha
buracos disfarçados pelos quais passávamos mensagens.
ZH - Foi um erro da esquerda apelar às armas naquele período?
Não acho que foi um erro. Até porque não havia outro meio de
combater a ditadura. A ditadura suprimiu todos os meios democráticos e
pacíficos. O nosso erro foi a pressa. Devíamos ter feito um trabalho político
muito mais profundo, sem a convicção de que empunhar as armas iria criar um
fato político. Não criou. A ditadura conseguiu, ao nos qualificar de
terroristas, nos distanciar da opinião pública. Creio que cometemos vários
erros. Possivelmente, o maior deles foi não ter um pouco mais de paciência
histórica para fazer um trabalho de formação política dos militantes. Porém, na
nossa consciência, nós do grupo de frades que apoiou o (Carlos) Marighella, era
uma ação legítima, embora não legal, e respaldada pela doutrina tradicional da
Igreja. Segundo o Santo Tomás, quando há uma tirania e não há outro meio de
derrubá-la, a não ser enfrentando o tirano com as armas, se isso será um mal
menor do que deixar que o tirano permaneça oprimindo povo, então que se faça
assim. E assim fizemos. Fomos derrotados nas armas, fomos vitoriosos a longo
prazo, porque a ditadura acabou e, historicamente, para sempre, do ponto de
vista simbólico. Hoje, os meus torturadores e carcereiros têm vergonha do que
fizeram e eu tenho orgulho do que fiz.
ZH - O senhor é apontado como o responsável pela indicação de
Joaquim Barbosa ao Supremo Tribunal Federal. Como vocês se conheceram?
Por mero acaso, numa agência da Varig, antes da posse de
Lula, em Brasília. Sentamos lado a lado, ele me reconheceu, puxou conversa e
trocamos cartões. E passaram alguns meses, o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos
entrou na minha sala, no Planalto, e disse que o presidente queria nomear um
jurista negro para o STF, perguntou se eu conhecia algum. Me lembrei da
conversa que eu tive, entreguei o cartão do Joaquim Barbosa e, depois, vi que
ele havia sido nomeado ministro. Penso que esta não é a melhor forma de fazer
um ministro, por razões étnicas e não por razões de histórico e mérito. Na
verdade, eu advogo que os ministros em todas as instâncias deveriam ser eleitos
por seus pares no Judiciário. Ou seja, para o STF, para o Tribunal Superior do
Trabalho, para o Tribunal Superior Eleitoral, todos deveriam ser eleitos pelos
juízes desde a primeira instância.
ZH - O senhor acha que Lula se arrependeu de aceitar a sugestão?
Essa é uma pergunta que só ele pode responder.
ZH - Como avalia a atuação de Barbosa no comando do STF e no
julgamento do mensalão?
Preferia que fosse menos espetaculoso. Acho que a Justiça
deve ser mais sóbria, mais séria e mais prudente.
Os brasileiros já elegeram um operário e uma mulher. O país
está preparado para ter um presidente negro?
Claro. Agora, o fato de ser negro não representa nenhuma
novidade. O Obama, todo mundo achou que ele ia ser uma novidade por ser negro,
mas esqueceram que, antes de ser negro, ele é americano e defende os interesses
dos EUA e considera que os interesses dos EUA estão acima dos interesses do
resto do planeta. Ponto. Então, espero que este não seja critério para escolha
de nenhum governante.
ZH - São poucos os bispos e cardeais negros. Há racismo na
Igreja?
Não só racismo como classismo. A Igreja Católica tem pouca
penetração nas classes pobres. E no Brasil, que carregou o mais longo período
de escravidão das três Américas, 350 anos, ainda hoje os negros são negros e
pobres. São duplamente discriminados, por serem negros e por serem pobres. E
como a Igreja teve pouca inserção entre os pobres, daí a razão porque tem
poucos negros.
ZH - Quais são as suas expectativas em relação aos trabalhos da
Comissão da Verdade?
Gostaria que fosse uma comissão da verdade e da justiça,
como foi no Chile, na Argentina, no Uruguai. Não por uma questão de vingança,
mas por uma questão de justiça, para apurar e punir os responsáveis. Mas espero
que, pelo menos, seja uma comissão da verdade e da transparência. Até agora,
como brasileiro, não sei a que veio a Comissão da Verdade. Sei que ela
trabalha, mas não vi nenhum resultado desse trabalho. Quem foram os
responsáveis pelo golpe? E pelas torturas e desaparecimentos? Onde funcionaram
esses centros? Sobre responsabilidade de quem? Quem financiou? Quem patrocinou?
Quem deu ordens? Tudo isso está por ser esclarecido. Aguardemos.
ZH - Qual a sua opinião sobre a exumação do ex-presidente Jango?
Acho que tem que exumar Juscelino, Jango, Lacerda. Todos
aqueles sobre os quais recai a suspeita de que foram assassinados pela
ditadura. A ditadura é bem capaz de ter eliminado todos esses líderes da
política brasileira.
ZH - Mesmo com a possibilidade de não ter resultado conclusivo?
E se tiver? Aí, pelo menos, é mais um dado de que esse processo
ditatorial foi muito mais cruel do que pensávamos. Ou seja, nem um brasileiro
exilado eles respeitavam. Tem um simbolismo de política terra arrasada: vamos
eliminar todos aqueles que podem fazer sombra aos governantes ditatoriais.
ZH - A que se deve essa crescente necessidade de ostentação,
manifestada tanto por jovens da periferia como por empresários?
São os valores do capitalismo neoliberal. E aí? Você vai
querer que o adolescente se levante no ônibus para mulher idosa? Ele fica com o
fone no ouvido e faz de conta que ela é invisível, ele nem a enxerga. Enquanto
escola, Igreja e família querem formar cidadãos, a grande mídia e a publicidade
querem formar consumistas. O sistema quer formar consumistas. Daí porque muitos
jovens hoje estão fixados em quatro "valores": poder, dinheiro,
beleza e fama. Quanto maior a ambição, maior o buraco no coração. E quanto
maior o buraco no coração, maior o número de farmácias em cada esquina, para
tentar cobrir a frustração. Estamos indo para a barbárie, se continuar predominando
como paradigma dessa pós-modernidade incipiente que estamos entrando, o
mercado, a mercantilização de todas as dimensões da vida.
ZH - Porque o senhor afirma que o capitalismo fracassou?
Fracassou para dois terços da humanidade que vivem abaixo da
linha da pobreza, quatro bilhões de pessoas. O capitalismo é bom para um terço,
que teve sorte e ganhou na loteria biológica, não nasceu nem entre os
miseráveis nem entre os pobres. E esse um terço deveria ter consciência de que
isso não é um privilégio, mas é uma dívida social para com aqueles não tiveram
a mesma sorte. E, portanto, devemos lutar para que essa loteria social não mais
exista.
ZH - Na sua opinião, existe alguma alternativa ao capitalismo?
Só vejo futuro para a humanidade na partilha dos bens da
terra e dos frutos do trabalho humano, não importa o 'ismo' como isso será
chamado. Nós hoje temos fome crônica, desnutrição crônica. Basta ver a África e
algumas regiões do Brasil. No entanto, a FAO diz que existe comida para 12
bilhões de pessoas - nós somos sete bilhões. Então, o problema não é falta de
alimento, é falta de justiça. O alimento existe, mas ele é uma mercadoria só
acessível para quem pode pagar, ainda que bilhões morram de fome.
ZH - O que motivou seu apoio à luta armada contra a ditadura?
A minha geração era viciada em utopias. Estou convencido de
que quanto mais utopia, menos drogas, e quanto menos utopias, mais drogas.
Estudava filosofia no convento e antropologia na USP. Tudo isso me levou a esse
envolvimento com a resistência à ditadura. Primeiro, através de manifestações
estudantis e, depois, de apoio à luta armada - nunca peguei em armas. Mas de
apoio, principalmente, aos perseguidos, quando me transferi, no início de 1969,
para o Rio Grande do Sul. Fui estudar teologia em São Leopoldo, e o Marighella
(guerrilheiro Carlos Marighella) pediu que eu organizasse o esquema de
fronteiras para permitir a saída de militantes perseguidos, na fronteia com
Argentina e Uruguai. E assim o fiz, como está detalhadamente descrito no livro
"Batismo de Sangue", que também virou filme. Me sinto muito
orgulhoso, apesar do custo pessoal que isso teve, em termos de quatro anos de
prisão, mas valeu a pena.
ZH - Como o senhor conheceu o poeta Carlos Marighella?
Como éramos da USP, ligados ao movimento estudantil, um dos
militantes que rompia com o Partido Comunista Brasileiro junto com o
Marighella, o João Antônio, que depois morreu em um acidente, trouxe o
Marighella aqui no nosso convento. No livro do Mário Magalhães, infelizmente, o
frei Oswaldo se equivocou ao dizer que nós conhecemos Marighella na sapataria
do pai do João Antônio, no bairro da Liberdade. Não, nos conhecemos aqui (no
convento). Hoje o frei Oswaldo reconhece que ele estava equivocado no momento que
deu a entrevista. Então, o Marighella veio aqui com o João Antônio interessado
em conhecer a renovação da Igreja, o concílio, e com o nome de professor
Menezes, com uma peruca que chamava mais atenção do que disfarçava. Mas não
percebemos quem ele era, a não ser na saída depois que ele nos deu um embrulho
e disse: "Olha, são algumas publicações minhas que quero deixar com
vocês". Quando ele foi, a gente abriu e viu "Poemas", de Carlos
Marighella, "Carta ao Povo Brasileiro", de Carlos Marighella. Foi quando
caiu a ficha.
ZH - Como foi a sua passagem pelo Rio Grande do Sul?
Em fevereiro de 1969, fui para o seminário do Cristo Rei,
onde hoje é a Unisinos, em São Leopoldo (lá era o seminário dos jesuítas) e já
com a proposta do Marighella que organizasse esse esquema de fronteiras. Passei
de 10 a 12 pessoas, inclusive sequestradores do embaixador americano _ o
sequestro aconteceu em setembro de 1969. Consegui formar uma redezinha de apoio
e tudo isso veio abaixo depois da morte do Marighella, em São Paulo, em 4 de
novembro de 1969. E eu só fui preso, cai numa cilada, no dia 9 de novembro de
1969.
ZH - Como foi essa cilada?
Quando o Cristo Rei foi cercado pela polícia, era mais ou
menos 14h. Marquei no livro "volto às 19h", que era para ganhar
tempo. E saí pelos fundos. Tomei um ônibus para Porto Alegre e, realmente, foi
uma boa ideia que tive, porque a polícia ficou esperado o meu retorno.
Prenderam vários padres, que não tinham nada a ver com a história, achando que
estavam me escondendo. Fui procurar o padre Manoel Valiente, que, por sua vez,
estava hospedando um assessor de Dom Helder, o padre Marcelo Carvalheira, que
depois veio a ser arcebispo de João Pessoa. Os dois me abrigaram e, em seguida,
me levaram para o convento das Irmãs de Jesus Sacrificado, um convento-asilo,
onde ficavam religiosas idosas. E o Jornal Nacional estava inaugurando naquela
semana, o Cid Moreira era muito jovem e, de repente, à noite, depois do jantar,
estávamos todos vendo televisão e aparece a notícia de que toda a polícia,
Exército, Aeronáutica estava atrás do terrorista frei Betto, ligado a
Marighella, possivelmente escondendo Lamarca (guerrilheiro Carlos Lamarca).
Enfim, eu era responsável pelo dilúvio universal. E aparece a minha foto
ocupando toda a tela da TV. Aí as freirinhas olharam para trás... Eu falei para
a superior, que era uma pessoa muito lúcida: eu não fico aqui, e ela "não,
não tem problema, não representa nenhum perigo". Mas, poxa, elas recebiam
visitas, falavam ao telefone.
ZH - Como acabou sendo preso?
O padre Manoel me levou para um sítio em Viamão, que,
segundo ele, era de um amigo que não utilizava e onde, portanto, poderia ficar
tranquilamente escondido. Pertencia a uma família muito tradicional do Rio
Grande do Sul. Uma tarde um filho do dono entra no sítio, que tinha caseiros,
me vê e nem vem falar comigo. No dia seguinte, ele volta e diz: "Você é o
frei Betto, né?". Digo "sim", e ele: "Pois é, esse sítio é
perigoso, foi utilizado por mim para reuniões estudantis. Vou te esconder em
Porto Alegre, no apartamento de um amigo". Me levou para Porto Alegre e
passei a noite numa mansão na Avenida Independência, com absoluta segurança de
que seria preso, de que tinha caído numa cilada, o que me deu tempo para jogar
uma série de documentos na privada. Na manhã seguinte, chegou um jipão do
Exército e eu fui preso. Um mês depois fui transferido para São Paulo.
ZH - Durante a ditadura, o senhor foi preso duas vezes (15 dias
em 1964 e quatro anos entre 1969 e 1973), passou por oito presídios, ficou um
mês em uma solitária, foi torturado. Que estigmas e que lições trouxe dessa
época?
A prisão foi um grande retiro espiritual e literário para
mim. Estudei, li, rezei, meditei. Sou uma pessoa antes e outra depois da
prisão. Ela me deu uma enorme liberdade, por mais paradoxal que essa afirmação
pareça. Deixei de dar importância para coisas que não têm importância, aprendi
a ver a vida como quem chupa manga deixando o caldo escorrer pelos braços. E me
fez perder o medo. Eu tinha tanta certeza que não sairia com vida que me
surpreendi de ter passado quatro anos, o que me fez continuar no Brasil. Houve
muita pressão da Igreja, da família e do governo militar para que eu fosse
embora do país. Poderia ter escolhido qualquer cidade importante, com
comunidade dominicana, seria acolhido depois de sofrer tanto. Mas não. Fui
morar numa favela em Vitória, onde fiquei cinco anos. Depois voltei para São
Paulo. Aprendi também a não odiar, não por virtude, mas por comodismo. O ódio
destrói primeiro quem odeia, não quem é odiado. Não adianta nada ter raiva de
torturadores e generais. Vai corroer o meu coração e não incomodá-los. Daí a
clareza de que a minha luta é contra um sistema e não contra essa ou aquela
pessoa.
ZH - O Evangelho endossa ou condena a visão de mundo
capitalista/liberal?
Condena radicalmente, porque o Evangelho prioriza o direito
dos pobres e o capitalismo neoliberal, não. O Evangelho propõe a solidariedade
e o capitalismo neoliberal, a competitividade. O Evangelho propõe a sacralidade
irredutível de cada ser humano - ainda que ele seja hanseniano, cego, coxo,
paralítico - e o capitalismo neoliberal, se puder, manda por fogo nos mendigos,
está pouco se lixando para essas pessoas que estão deitadas na rua, sabe?
Indiferença total, como disse o papa Francisco, é a globalização da
indiferença, isso é terrível.
ZH - Se Jesus vivesse hoje, ele seria mais alinhado à ideologia
de direita ou de esquerda?
Ele seria chamado de esquerda, como foi na sua época, porque
ele foi contra o status quo. E isso é ser de esquerda.
ZH - Que avaliação o senhor faz dos 10 meses do pontificado do
papa Francisco?
Muito, muito positivo. Francisco é uma grata surpresa, como
foi o Papa João XXIII. Depois de 34 anos de pontificados conservadores, temos
um papa que já iniciou a reforma da Igreja pela reforma do papado, quando ele
abre mão das insígnias pontifícias, de morar no Palácio Pontifício, de usar
cruz de ouro, sapato vermelho. Agora, ele nomeou oito cardeais de cinco
continentes para fazer a reforma da Cúria. Como a Igreja é piramidal, ele
começou a reforma de cima para baixo.
ZH - Que reformas o senhor espera do papa Francisco?
Tenho muitas esperanças, que Deus o guarde e o encoraje para
tirar a Igreja desse marasmo em que ela se encontra, numa atitude temerosa
diante da modernidade e pós-modernidade, numa atitude moralista, cínica, sem
compaixão, sem misericórdia, sem tolerância, sem amor às pessoas nos seus
dramas, suas contradições, na sua condição de pecadores, que somos todos.
Então, tenho muita esperança de que o papa Francisco vá fazer uma verdadeira
revolução na Igreja Católica, a começar pela aplicação das decisões do Concílio
Vaticano II, que ocorreu há 50 anos e ainda estamos esperando aplicação das suas
decisões. Tais como maior democratização da Igreja, o povo de Deus como
protagonista e não como ovelhas a serem tosquiadas.
ZH - Qual sua opinião sobre as acusações de que Bergoglio teria
sido cúmplice da ditadura argentina?
São infundadas. Sou muito amigo do argentino Adolfo Pérez
Esquivel, premio Nobel da Paz, e ele assegura que isso é infundado. Bergoglio
era um professor, um diretor dos jesuítas, não era um homem politizado nem
chamado para ter um papel proeminente naquele momento. E o próprio Bergoglio
admitiu que naquela época ele não era tão esclarecido quanto agora. Esse
passado condena, sim, a igreja da Argentina que foi cúmplice da ditadura, mas
não Bergoglio. Ele defendeu os jesuítas que foram ameaçados pela ditadura, mas
não chegou a ser um profeta como dom Paulo Evaristo Arns, dom Helder Câmara.
ZH - As declarações do Papa sobre os pobres sugeririam uma
possível reabilitação da Teologia da Libertação?
Sem dúvida nenhuma. Isso vem ao encontro da Teologia da
Libertação. O que ele está falando vem ao encontro e expressa o que a Teologia
da Libertação sempre disse. Ele, inclusive, recebeu o pai da Teologia da
Libertação, que é o frei Gustavo Gutiérrez, dominicano, meu colega. Isso mostra
que o Bergoglio não tem nenhum preconceito. Aliás, diga-se de passagem, quando
a Teologia da Libertação e as comunidades eclesiais de base eram valorizadas
pela Igreja no Brasil, os nossos templos estavam cheios. Depois que começaram a
ser discriminadas e reprimidas, dando lugar ao espiritualismo do "aleluia,
aleluia", os nossos templos começaram a esvaziar. Então, é caso de
perguntar: quem tem culpa? Quem está esvaziando a Igreja? A Teologia da
Libertação ou essa Igreja espiritualista que fica de frente para Deus e de
costas para os pobres?
ZH - Como o senhor analisa o aumento do poder de pressão e da
influência dos evangélicos na seara política?
Eu temo que alguns evangélicos - não todos - estejam
chocando o ovo da serpente. Já que eles não podem impor, através da sua pregação,
a sua moral e os seus costumes ao conjunto da população, então, eles buscam o
poder político, porque através da lei você torna qualquer decisão universal.
Exemplo: eu, como pastor evangélico só posso convencer alguém a não beber
álcool se ele se converteu à minha doutrina, mas, como político, eu posso fazer
a lei seca e acabar com a produção e comércio de bebida alcoólicas. Isso me
preocupa porque está sendo ameaçada a laicidade do Estado e do espaço político,
que são conquistas da modernidade.
ZH - Quais os recados que, desde junho, os manifestantes que
ganharam as ruas estão dando aos governos?
Queremos reforma política profunda, queremos deixar de ser
objetos de campanhas eleitorais de dois em dois anos e passar ao protagonismo,
queremos direitos sociais. O governo concedeu direitos pessoais, através da
desoneração da linha branca, da facilidade de crédito e do acesso a moto e
carro, mas não concedeu direitos sociais, que basicamente consistem em
alimentação, moradia, saúde e educação. Os países europeus começaram primeiro a
conceder os direitos sociais para, depois, conceder os direitos pessoais. Até
porque elas tendo direitos sociais, se qualificam para conquistar os seus
direitos pessoais, e o Brasil cometeu o erro de inverter o processo.
ZH - O que senhor acha da atuação de grupos anarquistas como os
Black Blocs, que costumam atacar símbolos do capitalismo durante os protestos?
Não tenho nada contra os Black Blocs. Tenho contra aos
baderneiros, e eu não confundo baderneiros com Black Blocs. Sou contra quebrar
bancos, lojas, ônibus, que é um instrumento útil para a população pobre se
locomover. Me lembro do velho Marx, no século XIX, dizendo aos operários da
Inglaterra: "Não adianta vocês quebrarem as máquinas. Os patrões mandam
vocês embora e compram outras. A nossa luta não é contra o seu patrão, é contra
o sistema". E eu repito a mesma coisa. Espero que esses manifestantes,
muito positivamente indignados e revoltados, apresentem propostas, porque sem
propostas não iremos a lugar nenhum. A raiva precisa se consubstanciar em
esperança.
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