Por Sérgio Pardellas, ISTOÉ
Foi a partir de uma data associada ao mau agouro que a
situação política do então presidente da República João Goulart se deterioraria
e as forças golpistas civis e militares encontrariam solo fértil para, dali a
20 dias, articular e sacramentar sua deposição, que condenou o País a 20 anos
de trevas. Eram 19h45 de uma sexta-feira 13 quando o nada supersticioso Jango,
suando frio, ainda meio baqueado por uma queda de pressão horas antes, subiu ao
palanque erguido na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Enquanto aguardava o
momento do seu pronunciamento, Jango fixou os olhos na multidão – cerca de 200
mil pessoas. A imensa maioria exibia cartazes com dizeres a seu favor. Em meio
a um ambiente de radicalização à direita e à esquerda, greves e inflação em
alta, o evento estava sendo observado com atenção não só pela população, mas
por segmentos expressivos da sociedade civil, agentes políticos de todas as
colorações partidárias e, principalmente, militares governistas e
oposicionistas. Afinal, o comício poderia marcar a definitiva aliança com as
esquerdas de um presidente até então hesitante a fazê-lo por medo de perder o
apoio dos moderados, encarnados pelo PSD de Tancredo Neves. A expectativa se
confirmou.
Ao tomar a palavra, às 20h46, sob forte calor e tensão
emocional, ao lado da mulher, Maria Thereza, Jango, de improviso, proferiu um
de seus mais duros discursos desde a posse. Enquanto o ministro da Casa Civil
Darcy Ribeiro soprava palavras incendiárias em seu ouvido, aproveitando as
pausas no discurso, Goulart selava sua união com as esquerdas ao defender as
reformas de base, entre elas a agrária, confirmar o rompimento com o PSD e
pregar a necessidade de reescrever a Constituição, à qual se referiu como
antiquada. O pronunciamento magnetizou a plateia e inflamou representantes do
PTB, PCB e CGT, mas também atiçou a caserna e setores conservadores. A imprensa
alinhou-se nas críticas ao comício e, daquela sexta-feira até 1º de abril, o
conflito político entre os grupos antagônicos da época assumiu proporções
preocupantes para a continuidade do processo democrático.
O discurso de Jango se materializaria, dois dias depois, em
uma mensagem enviada ao Congresso. Além das reformas de base, Goulart propunha
uma reforma eleitoral que criava o instituto da reeleição para presidente e
abria brechas legais para a candidatura ao pleito de 1965 do cunhado Leonel
Brizola, uma das principais lideranças do PTB. Até então, o petebista não
poderia se lançar candidato porque a Constituição dizia que eram inelegíveis
parentes de até segundo grau de ocupantes do Executivo.
O ambiente não poderia ser mais propício para a movimentação
dos militares golpistas. Para as esquerdas, as iniciativas do presidente foram
encaradas como uma vitória. Para a direita e conspiradores, “já não se tratava
de resistir, mas de intervir no processo para liquidar uma situação tida como
intolerável”, sublinhou o jornalista Carlos Castello Branco, que assinava uma
das colunas mais respeitadas da época, Coisas da Política, no “Jornal do
Brasil”. Até Juscelino Kubitschek, do
PSD, que não costurava e nem sequer pensava em golpe de Estado, pois era um dos
candidatos favoritos à eleição de 1965, comentou com um interlocutor: “Jango
passou dos limites. Saiu da legalidade que o sustentava”, anunciou. O
governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, da UDN, e o de São Paulo, Adhemar
de Barros, passaram a ocupar rádios e televisões para atacar Goulart. Carlos
Lacerda, ferrenho opositor, governador da Guanabara, ampliou o tom dos ataques.
Em meio ao clima de tensão política e desconfiança geral, nem as esquerdas
pareciam pacificadas, mesmo após todos os movimentos do presidente em direção
aos seus anseios. Houve, na esquerda, quem considerasse que um eventual golpe
em marcha, de inspiração direitista ou não, pudesse contar com a participação
do próprio presidente.
A Marcha da Família disseminou o medo da esquerda
No dia 18 de março, o ex-presidente da República Eurico
Gaspar Dutra concedia uma entrevista ao “JB” em que, além de atacar
pessoalmente Goulart, pregava “a união em defesa da legalidade enquanto é
tempo”. A entrevista, de grande repercussão, embalou manifestações populares a
favor da destituição de Jango. Numa espécie de revide ao Comício da Central, no
dia 19 de março surgiu o movimento intitulado Marcha da Família com Deus pela
Liberdade. Ostentando cartazes com os dizeres “Comuna não tem vez” e “Aqui não,
João”, a marcha reuniu 500 mil pessoas, entre lideranças conservadoras, católicas
e setores da classe média, na praça da república, em São Paulo. O evento que
tomou as ruas da cidade representou o grande ato de resistência a Jango.
Naquela altura, entre os círculos conspiratórios, Castelo Branco começava a se
sobressair como liderança anti-Goulart. O sentimento de medo de um governo de
esquerda que, para os opositores a Jango, “ameaçava a Constituição e a família
brasileira”, fora disseminado e ganhou ainda mais fôlego. Restava a gota
d’água. E ela teria proporções de um oceano para Goulart: a rebelião dos
marinheiros.
Em 23 de março, marinheiros e fuzileiros organizavam o
aniversário da associação que os representava. A festa ocorreria na sede da
Petrobras e serviria para os subalternos da Marinha criticarem as condições de
trabalho. O ministro da Marinha, Sílvio Mota, interveio na tentativa de proibir
não só a utilização da Petrobras como local da festa, mas também a comemoração
em si. No dia 24 de março, véspera do aniversário da associação não reconhecida
pela Marinha, Mota mandou prender 12 de seus dirigentes. Entre eles, seu
presidente, o cabo José Anselmo. Quando a crise eclodiu, em 25 de março, Jango
estava com a família em São Borja. Durante o evento, realizado na sede do
Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, cerca de dois mil marinheiros ouviram
um discurso desafiador do cabo Anselmo. Em tom político, ele defendeu as
reformas de base e atacou seus superiores.
A festa se desenrolava quando Mota mandou prender outros 40
marinheiros, mas foi desautorizado por Jango. Horas depois, o ministro da
Marinha renunciou ao cargo. No dia 27 de março, Jango, mesmo pressionado pelas
Forças Armadas, decidiu anistiar os rebeldes. Sentindo-se feridas no que mais
de essencial existia nelas, os fundamentos da autoridade, hierarquia,
disciplina e respeito às leis militares, as Forças Armadas estavam à beira de
um rompimento definitivo com Jango. Em conversa com o ministro da Guerra,
general Jair Dantas Ribeiro, JK dizia que na noite de 29 para 30 de março o
País vivia “a maior crise político-militar de sua história”. Os jornais
afirmavam que “o estado de direito submergia no Brasil”.
O momento exigia de Jango prudência política, mas ocorreu o
inverso. No dia 30 de março, o presidente resolveu comparecer à sede do
Automóvel Clube, onde aconteceria a posse da nova diretoria da Associação dos
Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar. Para assessores próximos a Goulart,
a ida ao evento era uma insensatez. Tancredo Neves aconselhou-o pessoalmente a
não ir, mas o presidente fez ouvidos moucos e desembarcou no Automóvel Clube
perto das 20h, acompanhado da mulher e de alguns ministros. Em discurso, além
de acusar “inimigos da democracia” de conspirar contra o seu governo, Jango
usou termos contrários à disciplina militar que azedaram de vez sua relação já
esgarçada com as Forças Armadas. Até os oficiais legalistas e nacionalistas já
temiam pelo pior. “Acabou-se. Não há mais sustentação. Eles vão dar o golpe”,
disse o tenente-coronel Alfredo Arraes de Alencar. A partir dali, organizações
de esquerda passaram a se preparar de fato para um possível golpe. “Agora,
quanto pior, melhor”, dizia o general Ernesto Geisel.
Rebelião dos marinheiros e discurso em clube militar foram a
gota d’água
No dia 31 de março, o movimento golpista já estava em marcha
e ganhava dinâmica própria. Em editorial intitulado “Basta!”, o prestigiado
jornal “Correio da Manhã” passou a cobrar a deposição de Jango. O presidente do
Senado, Auro de Moura Andrade, foi um dos primeiros políticos a romper
publicamente com Jango, ao denunciar a “infiltração comunista no País” e
afirmar a necessidade da “intervenção militar para garantir a ordem”. Em
seguida, o governador de Minas, Magalhães Pinto, apresentou-se como líder civil
do movimento para depor Goulart. Horas depois o presidente teve a confirmação
do golpe em curso. De Juiz de Fora (MG), o general Olímpio Mourão Filho liderava
um comboio militar, formado por recrutas, que marchava para a Guanabara. Em uma
derradeira conversa com Jango, no Palácio Laranjeiras, JK sugeriu ao chefe do
Executivo medidas conservadoras para estancar a crise. Fez coro o chefe do
Estado-Maior das Forças Armadas, Peri Bevilaqua. O general garantiu apoio
militar, desde que declarasse oposição às greves patrocinadas pela CGT e se
comprometesse com a manutenção da disciplina e da hierarquia militar. Goulart
se recusou a tais exigências. Naquele momento, o presidente ainda acreditava
num dispositivo militar a seu favor. Pensava também contar com o apoio do
general do II Exército, Amaury Kruel, que ainda não havia se posicionado em
meio ao turbilhão da crise. Quando tropas, tanques e carros blindados do Exército
estacionaram no Ibirapuera (SP), Kruel tomou sua decisão em favor dos
golpistas. Em pronunciamento às rádios, depois de o governador Adhemar de
Barros declarar apoio aos mineiros, Kruel disse que a Pátria deveria ser salva
do “jugo vermelho”. Foi uma derrota para Goulart. Do QG do Exército, Geisel e
Golbery do Couto e Silva aglutinavam os focos de rebelião militar por telefone.
Na noite de 31 de março, Kruel ordenou o deslocamento das tropas do II Exército
em direção à Guanabara. Ou seja, para lá marchavam as colunas militares de
Minas e de São Paulo, ambas para derrubar o governo. No Nordeste, o comandante
do IV Exército também acompanhou os golpistas e ordenou a prisão do governador
Miguel Arraes. Ao amanhecer do dia 1º de abril, o governo de Jango estava
sitiado. Às duas da madrugada do dia seguinte, quando o presidente já se
encontrava em sua estância em Porto Alegre, o presidente do Congresso, Auro de
Moura Andrade, declarou a vacância do cargo de presidente. O golpe estava
consumado.
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