Artigo de Fernando Gabeira
Fiquei triste em 50 e pensei em torcer contra o Brasil em
70. Inutilmente.
Tenho várias Copas na bagagem. Esta é realizada no Brasil
sem que os brasileiros fossem consultados. Mesmo assim nos envolve. Resistir é
tão difícil como distribuir panfletos políticos nas vésperas do Natal – essa
lição aprendi em dezembro de 68, protestando contra o AI-5.
Sigo a Copa como torcedor apaixonado, mas com uma ponta de
razão anoto meus limites. Força, Brasil! Porém não posso comprar tudo o que o
Neymar anuncia porque estaria quebrado em pouco tempo. Tampouco posso comer os
frangos e lasanhas que o Felipão nos oferece na TV porque engordaria uns dois
quilos nesta Copa.
Também sou brasileiro, mas não consigo achar, como os
locutores de TV, ter sido uma indelicadeza escalar um árbitro japonês para
apitar Brasil x Croácia. Afinal, ele expulsara Felipe Melo em 2010 na partida
contra a Holanda, e o fez com absoluta correção. Por que despertaria más
lembranças, por que deveria ser evitado? Yuichi Nishimura marcou um pênalti
duvidoso a favor do Brasil. Agora consideram uma delicadeza escalá-lo para
apitar nossos jogos.
Moreno como vocês, não posso embarcar nessa. Muito menos nos
insultos a Dilma.
Sou oposição desde cedo, meio de 2003. Mas acho que as
circunstâncias eram especiais. Uma abertura de Copa do Mundo revela um pouco o
País. Não precisava uma festa tão mixuruca. Nem, por mais ásperos que sejam os
estádios, dizer aquilo a uma senhora, em voz alta, diante de bilhões de
espectadores.
Capitão do time que trouxe a Copa ao Brasil, Lula assistiu
ao jogo diante de uma televisão, possivelmente na tranquilidade do lar, ou num
refúgio petista.
Não se xinga uma senhora, mas também é preciso alguma
eficácia para executar a tarefa de enfrentar um estádio num momento em que o País
está enfurecido com a política. Dilma foi xingada em três estádios no início da
Copa. No ano passado houve apenas o que chamamos de uma vaia básica. Ninguém
notou gradação, a passagem de uma etapa para outra, que, aliás, já estava
aparecendo em alguns shows musicais.
Tenho insistido na tese da separação radical entre políticos
e a sociedade. O Brasil é um carro sem as molas da mediação parlamentar, sem o
lubrificante do diálogo democrático: marcha aos solavancos. Mostramos isso ao
mundo, ao vivo e em cores.
Em Brasília os políticos querem que o povo se estrepe, com
um verbo começado com f. Nos estádios parcela do povo quer que os políticos
tomem naquele lugar. É simples assim, apesar da vulgaridade do enunciado.
Pelos descaminhos da nossa História recente passamos a nos
detestar. E pelos labirintos da nossa cultura erotizamos nossa antipatia
recíproca. Supondo que os repórteres tenham o hábito de traduzir as coisas (era
assim no passado), grande parte do mundo ficará sabendo a que ponto chegamos. E
lamentará, como muitos brasileiros lamentam, que para tanto futebol tão pouco
avanço político.
Quando um governante abraça a ideia da Copa do Mundo em seu
país, pensa na sua própria glória. É irônico ser hostilizado na abertura do
evento. Lula soube tirar o corpo da reta, deixando Dilma ouvindo frases que não
se podem dizer diante das crianças. O ideal seria fingir que não houve nada,
seguir com a festa. Nas minhas análises, a explosão de parte do público é o
resultado de um longo processo de desgaste. Outros políticos que ali se
apresentassem teriam destino semelhante ao de Dilma.
Lula e o PT não interpretam assim. Continuam se achando
populares e bem-amados. Tanto que pretendem radicalizar, a julgar pelas
notícias, caso vençam as eleições de novo. Eles acham, como Lula declarou, que
os palavrões contra Dilma foram estimulados pela imprensa. Num momento de sua
fala menciona o PT na oposição e diz que nunca fez o que fizeram com Dilma.
Ora, a imprensa jamais defendeu xingar alguém, apenas despertou a curiosidade
para a roubalheira entre o governo e aliados. E os gritos no estádio não podem
ser atribuídos a algo organizado pela oposição.
Lula usou o episódio para fortalecer sua vontade de
controlar a mídia e isolar a oposição. É uma reação clássica: supor que as
coisas não andam bem por falta de mais repressão e controle.
A partir dessa lógica, é possível prever dias piores. O PT
escolheu os culpados pela reação a Dilma e, como sempre, vai partir para cima.
Não se pode dizer que seja uma saída brilhante. Mas foi Isaac Deutscher, na sua
trilogia sobre Trotsky, que lembrou bem: as pessoas parecem burras, mas não
são; apenas não têm mais margem de manobra.
Criar conselhos populares numa época informatizada, em que
todos podem participar, faria Lenin mexer-se no túmulo, apesar de sua rigidez
de corpo e alma. Em pleno século 21, estabelecer o controle da mídia e cair de
pau na oposição vai ser muito difícil: pede quadros dispostos a matar ou
morrer. Conheço apenas alguns no PT, assim mesmo sobreviventes dos anos 60.
Será que a maioria deles, perdida em seus empreguinhos, seus gadgets, suas
escapadas à Disneylândia, vai encarar essa tarefa, quase impossível hoje em
dia?
No futebol temos visto a derrota de alguns favoritos, algumas
zebras e até a humilhação de grandes times, como o da Espanha. Na política, o
ano eleitoral está só começando. Com tantas Copas na bagagem e a lembrança das
revoluções do século 20, é preciso sempre cantar para os detentores do poder o
verso de Jimmy Cliff: “Ooh, the harder they come, the harder they fall, one and
all”. Quanto mais forte vierem, mais forte eles cairão, todos e cada um. O que
a muitos pareceu um episódio marginal, o clima da abertura da Copa, com as
pessoas cantando apaixonadamente o Hino Nacional e insultando a presidente, é
um grande sintoma de mal-estar na vida cotidiana brasileira.
Vinicius falava da grande ilusão do carnaval: a gente
trabalha o ano inteiro por um momento de sonho e tudo acaba na quarta-feira.
Como no carnaval, tudo acaba com o apito encerrando a Copa. Aí virão os duros
meses da ressaca e, lamento prever, o jogo feio e sujo do poder a qualquer
custo. Quem seremos no final disso tudo, como revigorar a terra arrasada da
nossa convivência política?
Grandes jogos nos esperam.
Artigo publicado no Estado de São Paulo em 20/06/2014
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