Artigo de Fernando Gabeira
Com robusta experiência em derrotas eleitorais, arrisco-me a
prescrever esta pílula do dia seguinte.
Um dos primeiros aprendizados na derrota é superar qualquer
impulso de culpar os eleitores ou regiões inteiras pelo resultado das urnas. É
preciso examinar as políticas que nos levaram a esse resultado, os erros que
cometemos ao longo do caminho.
Outra ilusão é supor que, eleito, o adversário vá realizar a
política de quem perdeu. Muitos esperam mudança na política econômica de Dilma.
Sou mais cético, embora reconheça a força da realidade, a enorme pressão que os
próprios fatos vão exercer sobre seu governo.
A política econômica de Dilma não nasceu apenas de sua
cabeça. Ela tem uma base teórica que sempre foi bastante influente entre os
economistas e acadêmicos. O centro do debate é o papel do Estado na economia.
Até a crise de 2008 era uma visão na defensiva na própria conjuntura mundial.
Como casais condenados a viver juntos, era preciso rediscutir a relação Estado
e mercado, o peso que teriam na nova pós-crise.
Isso aconteceu até nos Estados Unidos, onde Obama lançou um
plano de recuperação na economia, que agora chega a seu fim, atingindo o
objetivo. Caminhos teóricos distintos levaram a escolhas distintas. Na
compreensão de Obama, o Estado precisava impulsionar a economia porque é dele
que depende sua sobrevivência.
A intervenção do Estado na economia brasileira, em linhas
gerais, enfraqueceu o papel do mercado, pelo fortalecimento da intervenção do
governo. No campo da energia, as intervenções de Dilma para baixar o preço da
eletricidade, voluntariosamente, e conter o preço da gasolina são evidências de
que superestimam o papel do Estado. Aliadas, é claro, a uma grande vontade de
ganhar as eleições. Os estímulos à indústria automobilística foram uma faca de
dois gumes. Eles agravaram o problema da mobilidade urbana, que era um dos
motores das manifestações de 2013. Essa política é uma contradição ambulante.
Além disso, valeu um processo de protecionismo na Organização Mundial do
Comércio.
No meu ponto de vista, o governo esteve sempre mais
preocupado com a área da economia que domina: estatais e, indiretamente, a
constelação de empresas que giram em torno delas. Houve estímulos via BNDES
criando uma órbita em torno do governo. Uma órbita favorecida: toma-se dinheiro
público coberto pelo sigilo bancário.
A conclusão oficial foi expressa por Guido Mantega: nossa
política econômica foi aprovada nas eleições. A alguns quilômetros dali, Dilma
afirmou que a mudança foi a palavra mais ouvida na campanha. Não vi contradição
entre os dois, porque Dilma jamais associou a palavra mudança à economia,
sempre afirmou que estava no caminho certo, que seu modelo era exemplo
universal de como atravessar uma crise sem perda de salário ou emprego.
Durante esse período de exaltação do próprio desempenho, o
governo jogou para baixo do tapete dados essenciais. Dois deles já vieram à
tona: o rombo de R$ 20 bilhões nas contas públicas e o da redução da pobreza.
Outros esperam no pipeline: índice de desmatamento na Amazônia, redução da pobreza,
performance no ensino.
Dilma afirma querer esclarecido, em todos os detalhes e
nomes, o escândalo de corrupção na Petrobrás. Tenho inúmeras razões para
duvidar. O governo tentou bloquear a CPI, os vazamentos indicaram que a própria
base do governo está envolvida; Lula e Dilma foram mencionados pelo doleiro
Alberto Youssef. A realidade é que o governo vai considerar estratégico
desqualificar as investigações. E não está sozinho nisso. As grandes empresas
envolvidas contrataram poderosos advogados que fracassaram no mensalão, mas
ganharam experiência para o novo confronto: o petrolão.
O Supremo terá 10 dos 11 ministros indicados pelo PT. Claro
que alguns deles sabem que o PT passa e o Supremo fica. Mas sua gratidão será
cobrada, como foi intensamente cobrada de Joaquim Barbosa. Esse processo do
escândalo na Petrobrás será uma intensa luta entre quem quer saber e punir e
quem quer esconder e inocentar. Não creio no êxito da tentativa de esconder. O
escândalo ultrapassou as fronteiras: auditorias internacionais serão realizadas
e as leis americanas são difíceis de driblar.
O assalto à Petrobrás e a política econômica se entrelaçam e
podem nos levar a um debate um pouco mais concreto sobre este capitalismo de
Estado que o PT impulsiona. A corrupção instalou-se no cofre da maior empresa
estatal e se estendeu para toda a constelação que gira em torno dela.
Dilma afirmou que vai entregar o Brasil pronto para um novo
ciclo de crescimento. Obama fala como se tivesse concluído a tarefa. Alguém
perdeu tempo nestes cinco anos.
Nunca tive a experiência de uma vitória em eleição
majoritária. Mas havia uma questão temível esperando o vencedor na manhã
seguinte: como fazer tudo o que prometi?
Os anos serão duros para Dilma. Seca no Sudeste, seca de
ideias sobre política de recursos hídricos, economia estagnada e uma tentativa
de provar que vivemos na realidade dos programas de televisão da campanha. Será
preciso um grande plantel de macunaímas para o governo escapar ileso dos fatos,
das leis da economia e de um bilionário processo de corrupção. E não podem
dizer como o nosso herói sem nenhum caráter: ai, que preguiça!
O desdobramento de uma política econômica fracassada e o
desenrolar do maior processo de corrupção da história do País devem produzir um
debate muito mais próximo da realidade do que uma fantasia novelesca da agenda
eleitoral. Minha esperança é que as pessoas olhem bem para a falência da
economia e a gravidade da corrupção na Petrobrás. E esqueçam um pouco quem foi
parado na Lei Seca, quem estava preparando tirar a comida da mesa dos pobres
para depositá-la no Banco Central independente. Assistimos a uma ficção da pior
qualidade. Precisamos voltar à realidade cotidiana. O assalto à Petrobrás foi
uma audácia. Audácia maior é o assalto à nossa lucidez.
Fernando Gabeira, jornalista, escritor e ex-deputado federal
Artigo publicado no jonral O Estado de São Paulo em
07/11/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário