Artigo de Fernando Gabeira
O Muro de Berlim caiu há 25 anos. Foi um marco simbólico da entrada
no século XXI. Durante as comemorações de agora, ouvi, de novo, a expressão
“muro na cabeça”. No caso da Alemanha, a expressão era uma forma de nomear
resistência à integração do país e preconceitos que sobreviveram à queda
material do muro. Aqui no Brasil, uso em outro sentido: o muro ainda está na
cabeça nostálgica dos líderes do PT que lançaram uma nota, afirmando seu desejo
de conquistar a hegemonia na sociedade brasileira.
O conceito de hegemonia é atribuído ao filósofo italiano
Antônio Gramsci. Ele defendia que o comunismo deveria se impor através de uma
grande mudança cultural, mais poderosa que a simples tomada do poder. Por mais
inadequadas que sejam para nossa época, as ideias de Gramsci foram uma saída
para o Partido Comunista italiano. Um dos seus frutos é o conceito de
compromisso histórico entre o PCI e a democracia cristã.
As ideias de Gramsci tiveram uma influência na formulação do
eurocomunismo, que precisava de uma teoria para negar uma revolução de
vanguarda que assume o poder pela força. Até certo ponto, o Partido Comunista
italiano levou a sério as ideias de Gramsci, investindo, entre outros, na
cultura, livraria, jornal, revista teórica, editora. Mas hoje, 25 anos depois
da queda do muro de Berlim, o eurocomunismo foi soterrado com a derrocada do
império soviético, a fragmentação da Iugoslávia.
E 25 depois, o PT ressuscita o conceito de hegemonia.
Hegemonia para que visão mundo, cara-pálida? O conceito pode levar a inúmeros
equívocos. Ele é vizinho da onipotência. Contém o desejo do PT de ter a
narrativa dominante para a nossa História. Como interpretar uma hegemonia que
mascara os números e inaugura a contabilidade criativa? Esse dissolver dos
dados reais na ilusão ideológica é um sinal vermelho que se acende na fantasia
hegemônica. O verso de Cazuza é o melhor antídoto: sua piscina está cheia de
ratos, e suas ideias não correspondem aos fatos.
Só um muro na cabeça nos fará esquecer os anos 1930 na
Rússia, quando a fome rondava no horizonte, e Lysenko fez suas experiências
revolucionárias na agricultura. Falseou os resultados e decretou que a genética
era uma ciência burguesa decadente. Muitos cientistas foram executados pelo
stalinismo porque serem contrários à manipulação ideológica de Lysenko. Nesse
caso dramático, a ideologia não se contentou em driblar a aritmética, como o
PT, mas invadiu o campo da ciência e condenou à morte quem a contestava com
base teórica e prática.
Depois dos exercícios desvairados da hegemonia política e da
versão mais branda do comunismo europeu, que valor pode ter esse conceito numa
sociedade plural, em que a liberdade e espaço individual cresceram de forma
acentuada?
Há razões políticas e históricas para se desconfiar do
conceito de hegemonia. No Brasil de hoje, ele é adotado pelo partido no poder há
12 anos. Se estivesse no Congresso e o PT me propusesse uma tarefa comum e
necessária, responderia: a única condição é de que vocês deixem o chapéu
hegemônico lá na chapelaria da entrada. Ninguém é dono da verdade.
Vamos dar uma volta pelo conceito. O PT fez campanha
eleitoral com uma política econômica. O partido atribuía ao adversário uma
série de medidas de contenção de despesas que terá de adotar. O candidato
derrotado poderia reclamar para si a hegemonia real: não importa que candidato
vença, minha visão terá de ser adotada, logo é hegemônica. Mas seria
pretensioso. O caminho não é esse. O fracasso da política econômica é
reconhecido por teóricos de vários horizontes e, aos poucos, forma-se um
consenso sobre o que fazer para sair da crise.
O PT está numa encruzilhada. Ou avança num caminho que não
dá mais pé e afunda a economia, ou aproveita o consenso que se forma e muda o
rumo. Se o objetivo é apenas se manter no poder, é possível, historicamente,
alongar o erro. Os bolivarianos seguem no poder na Venezuela, apesar da
catastrófica performance econômica. Os irmãos Castro ainda dominam uma Cuba
empobrecida.
De Gramsci a Bolívar, a visão de hegemonia ganha uma nova
forma na América Latina: dobrar o Congresso, ter a Justiça nas mãos, e torturar
opositores na Venezuela, como denunciou o relatório da ONU. Essa hegemonia,
irmão, só na porrada: é uma simples tática de se perpetuar no poder.
Quando descobriu sua decadência nas metrópoles, o PT inventa
a palavra-chave para dar a volta por cima. A saída é buscar a hegemonia, para
que todos passem a ver o mundo como nós desejamos que vejam. Onde estão essas
ideias maravilhosas que vão nos arrebatar, revelando o verdadeiro sentido da
História? Como elas não existem, hegemonia na verdade é apenas uma palavra na nota
do PT. Se fosse o redator, escolheria Shazam ou Abracadabra. Depois de tantos
anos da queda do Muro real, o melhor é tentar a magia.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 16/11/2014
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