Artigo de Fernando Gabeira
Sonhei que iria para a Guiné, a trabalho. Fui buscar meu
visto no Copacabana Palace. O vice-cônsul estava na piscina, com as mãos
apoiadas na borda. Estendi meu passaporte e ele sacudiu as mãos para se
certificar de que estavam secas. — Eo carimbo? — perguntei. — Primeiro, examino
os papéis — respondeu. — O carimbo, o garçom traz na bandeja. Se for o caso.
Enquanto olhava minha foto no passaporte, disse que gostava
muito da piscina do Copa. Era preciso ser gentil: — Temos boas piscinas em toda
parte. É de nossa autoria a ideia de uma piscina de feijoada.
O vice-cônsul me olhou de cima a baixo, como se estivesse
falando outra língua que não o espanhol.
Comentário inútil. A piscina de feijoada só existia na
imaginação do autor de “Macunaíma”. E foi encenada uma só vez, no Parque Lage,
por Joaquim Pedro de Andrade, com Grande Otelo no papel do herói sem caráter.
A informação só serviria para eles se tivessem uma escola de
samba e fizessem um enredo sobre o Brasil. Uma piscina de feijoada daria um bom
carro alegórico. É tudo.
O vice-cônsul fechou o passaporte, um dedo atravessado na
página do retrato.
— O senhor acha que posso entrevistar o presidente Obiang?
— Sente-se aqui na borda da piscina — disse ele, com um
sorriso benevolente.
Puxei a cadeira e o garçom me tomou como hóspede e me trouxe
uma água de coco.
— O senhor deve ter um programa de tevê. Espero que seja
decente, não vejo essas coisas. Por que imaginar que o presidente falaria com
um repórter de tevê?
Nada mais natural, respondi: presidentes falam. O vice-cônsul
disse que leu nos jornais que o segredo da presidente Dilma era fechar a boca.
Foi minha vez de olhá-lo com um sorriso superior. A presidente referia-se ao
segredo de sua dieta alimentar.
— Nossa presidente fala. Sujeito, predicado, verbos se
atropelam como uma manada correndo do incêndio nas savanas. Mas fala.
O vice-cônsul deixou o passaporte na borda, mergulhou a
cabeça para se refrescar. Emergiu com um rosto iluminado pelo reflexo do sol
nas gotículas no seu rosto.
— Nosso presidente fala diretamente com Deus. Ouve
conselhos, até críticas. Por que falar com os homens?
Subitamente tocou uma canção ao longe: “Nosotros que tanto nos
queremos”. Mas não havia música na pérgula. Tomei como uma luz interna e voltei
à carga:
— Nicolás Maduro fala com os pássaros. Cristina Kirchner
fala no Twitter. Se Obiang fala com Deus, isso não é um absurdo em nuestra
América. Ainda assim, podemos conversar.
O vice-cônsul chamou o garçom e me encheu de esperança. Vai
pedir o carimbo, pensei. — Uma água de coco, por favor. Visto negado. — Em
tese, poderia conceder o visto. Mas é inútil. Alguns países mais liberais
concedem o visto e estampam uma frase: “Deixai de fora toda a esperança”. Não é
o nosso caso. Sabemos que as pessoas não se desgarram de suas ilusões.
— Não merecemos recusa — afirmei. — Prendemos opositores em
Caracas, suicidamos promotores em Buenos Aires, mas circulamos com alguma liberdade.
— Hermano, cada um escolhe seu caminho. Onde é que você
estava quando mataram Patrice Lumumba? — Era apenas um garoto — respondi. —
Também eu era — disse ele. — Só estou mostrando a você como seria a Guiné se
optássemos por discutir com as pessoas. Aqui no Brasil, não se prende nem se
suicida, acho eu. Apenas se lança uma culpa no coração do opositor. Onde é que
você estava quando Nero queimou Roma, quando Hitler aniquilou milhões de
judeus? Não seja hipócrita.
Percebi que acabaram as chances do visto. O próprio
passaporte na borda da piscina transformava-se numa sandália Havaiana
azul-marinho.
— Tente no próximo ano, estaremos na mesma piscina, no mesmo
carnaval, com o mesmo garçom, o Osvaldo. — Arnaldo — respondi. — Ok , o mesmo
Arnaldo, desfiles, alegorias polêmicas. Quem sabe o tempo não te anime a
mergulhar na imensa feijoada que é a história real?
Três esplêndidas mulheres da comitiva se aproximavam da
piscina. Surfistas preparavam-se para a manhã de ondas. Não sei se de mim, do
passaporte ou da sandália, surgiu um drone, e juntos sobrevoamos a límpida
manhã de Copacabana. Na medida em que subíamos, via os vestígios do carnaval
nas ondas e voava velozmente para o Nordeste em busca dos cânions e escarpas
que lembram o tempo em que éramos um só bloco com a África.
Na cabine do drone, ainda ressoava a última advertência do
vice-cônsul:
— Alguns anos de espera e o senhor se hospedará num prédio
construído por brasileiros. Era para estar pronto, mas o senhor sabe, os
atrasos, os aditamentos… ____ Alguma coisa no drone anunciava a hora de voltar.
Excesso de altura e velocidade, descemos suavemente no caminho de volta.
Sobrevoamos os rios de xixi que desaguavam no mar e, de mansinho, acordei para
a manhã real.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 01/03/2015
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