Artigo de Fernando Gabeira
Tranquilo como a manhã de domingo. Cantávamos isso nos anos
1980. Espero que todo dia de domingo seja tranquilo. No domingo passado, lia
revistas quando ouvi panelaços e gritos de “fora Dilma”. Não sabia que ela
apareceu na tevê. Pensei: esses caras estão errando de domingo, o protesto é
dia 15. Rapidamente, percebi que era manifestação espontânea da elite branca,
como diz o PT. Em Ipanema, com tanto sol, a elite é morena, mas bateu panelas
com a mesma intensidade.
O problema das manifestações de hoje não é a leveza do
domingo, nem mesmo ter números expressivos. O problema, como em 2013, é evitar
a violência e isolar os desordeiros, que se aparecerem agora serão, claramente,
uma força auxiliar do governo.
Muita gente pede o impeachment de Dilma. Dizem que é
golpismo. Não é. Está previsto em lei e passa por um ritual democrático:
existem razões concretas? E por uma reflexão política: se cai o presidente, o
que virá depois? Vivemos a mais complexa crise dos últimos 30 anos. Não vejo
capacidade em Dilma para liderar o país na sua retomada. Nem vejo o PT com
instrumentos para entender a realidade.
Conheço as lentes ideológicas. Elas se tornam mais poderosas
quando está em jogo o próprio emprego. O PT tende a afirmar que os protestos
vêm dos ricos. Tudo o que vem dos ricos é suspeito, logo deve ser rejeitado
pelos pobres. Com o tempo, vão se assustar com o número de ricos no país, ou,
finalmente, admitir que rejeição ao PT é um fato nacional. Os intelectuais
acham que há um ódio contra o PT. Não se perguntam nunca se o partido fez
alguma coisa errada. Pelo contrário, criam a seguinte imagem: os ricos nos
odeiam porque os pobres passaram a consumir, frequentar universidades e viajar
de avião.
De todos os processos mentais, um dos mais eficazes é esse:
localizar uma virtude, no caso a distribuição de renda, e atribuir a ela as
razões do ódio ao PT, suprimindo nesse processo mágico a roubalheira, o cinismo
e a incompetência. Presidente incapaz, partido corrompido até a medula não têm
condições de conduzir o país para fora do buraco em que nos meteram.
As manifestações de hoje não vão resolver sozinhas esta
parada. Mas podem discutir direções. Impeachment, renúncia? Os tucanos não
gostam de saídas conflitivas. Querem que Dilma sangre quatro anos. Pra que
tanto sangue, meu Deus? Se os tucanos querem isso, imaginem os vampiros.
Os meandros da política tendem a desidratar os pedidos de
impeachment. Em muitos lugares do mundo o povo dispensou a oposição e os
políticos nesta fase. Ao invés de impeachment, que passa por um rosários de
crivos necessários, simplesmente adotou “o pede para sair”.
Por mais profunda que seja a crise, agarrado aos cargos e ao
poder, o PT jamais aceitaria uma renúncia. E que valor ela teria se no seu
lugar fosse instalado o PMDB? Todas as certezas vão passar por uma prova. Como
diz o poeta, segunda-feira ninguém sabe o que vai acontecer. Não me refiro
apenas ao dia de amanhã, 16 de março. Se a crise se aprofundar, se as pessoas
sacudirem a árvore com intensidade, eles acabam saltando por uma questão de
sobrevivência. Aí, sim, nesse momento, será possível falar de união nacional,
de trazer as forças da sociedade para contribuir com a ideia de renovar.
Desde adolescente participo de manifestações. Aprendi a
vê-las como algo não linear. Elas têm fluxo e refluxo, como o movimento da
marés. Não salvaremos o país neste domingo. É só o começo de um novo processo.
Será longo e difícil, porque a crise econômica vai roubar também muitos dos
nossos sonhos. E não são apenas sonhos de consumo. Sonhos de crescimento,
atualização, competividade profissional. Sacudir a árvore é um antídoto à ideia
que as vezes nos assalta: meu país fracassou, logo também sou um fracasso.
Domingos são tranquilos e às vezes repetitivos. Desde a
macarronada da infância ao futebol, os programas de auditório. Nos domingos, às
vezes morremos, pelo menos esta é a sensação que a mesmice nos traz. O panelaço
de domingo passado e as manifestações de hoje abrem uma nova fase. Não estamos
em 2013. Naquela época, havia apenas uma sensação difusa de revolta contra todo
o sistema político.
Nesse momento, as pessoas têm um foco. Sentiram-se enganadas
na campanha. Exigem reparos. Estão conscientes de que a Petrobras foi
assaltada: querem investigação e cadeia para os culpados. Em 2013, o objetivo
parecia apenas exigir serviços públicos decentes em troca dos impostos. Agora o
buraco é mais embaixo. Parece que as pessoas perceberam que isso só é possível
com uma sacudida maior e focalizada. Não estamos em 2013 simplesmente porque a
crise não nos deixará viver essa ilusão.
Não se trata apenas de desabafar num domingo tranquilo. Eles
acreditam que esqueceremos tudo durante a semana. Sempre jogaram com o
esquecimento. Mas a crise nos dará a memória de um elefante.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 15/03/2015
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