Muita gente andou falando ou escrevendo a respeito do meu
silêncio, alguns até em tom de cobrança ou censura, como se eu estivesse me
esquivando da responsabilidade de dar opinião sobre o atual momento da política
brasileira.
Como disse Mark Twain, “os boatos a respeito da minha morte
estavam um pouco exagerados”. Não andei tão calada assim, basta ver que em
minhas páginas na internet tratei das questões mais importantes da vida
brasileira, como a crise hídrica, a retomada dos ataques aos direitos indígenas
e, é claro, as investigações da corrupção na Petrobrás. Também divulguei, em
várias mensagens, minhas observações sobre a disparidade entre a propaganda da
presidente reeleita e os atos reais de seu governo, que chamei de “desmandamentos”.
Não foi, portanto, um silêncio muito silencioso.
Se me ative às páginas da internet, especialmente nas redes
sociais, deixando de lado as entrevistas e artigos na chamada “grande mídia”, é
porque preferi não seguir a pauta convencional, onde o bate-boca pós-eleitoral
e as versões da guerra partidária continuavam acirrados. Como já disse, a
polarização não é apenas uma disputa entre dois lados, é uma cultura, um modelo
mental que domina a política e a comunicação, algo difícil de desfazer.
O respeito à democracia nos ensina a dar um prazo inicial a
todo governo eleito, para que diga a que veio. Sinto que isso vale também
quando o escolhido – ou guiado pelas estrelas – recebe da sociedade a cômoda ou
incômoda tarefa de suceder a si mesmo.
Desde 2010 venho alertando para a incompatibilidade entre
dois fenômenos políticos contemporâneos, uma contradição que nos empurrava para
o abismo onde hoje caímos: de um lado, o avanço social, político, econômico e
cultural de uma significativa parcela da sociedade, que se esforça para deixar
a passiva posição de espectadora e intenta ser protagonista no desenvolvimento
do país; de outro lado, o enorme atraso na política, a lentidão e até o
retrocesso na qualidade das instituições e na representação. Repeti incontáveis
vezes: o atraso político é a maior ameaça ao que conquistamos a duras penas –
Democracia, Estabilidade Econômica e Inclusão Social.
Esse atraso nos fez estacionar em um sistema político que
degrada os processos sociais de diversas maneiras, entre as quais destaco três.
Primeiro, afasta os verdadeiros agentes de transformação das
dinâmicas econômica e política, retira-os de todos os centros reais de decisão
e os coloca no lugar de meros espectadores no processo político. Empresários ou
trabalhadores, estudantes ou cientistas, comunidades ou movimentos, todos
são“avassalados” ou meramente excluídos, só os políticos profissionais podem
participar de uma espécie de república dos operadores.
Segundo, cria uma governança sem qualquer compromisso com a
execução de um programa, compondo o governo e configurando sua base de
sustentação no Congresso através do loteamento de pedaços gerenciais e
financeiros do Estado. A gestão dos assuntos públicos é entregue a uma teia de
esquemas que atravessa instituições e órgãos públicos, empresas e bancadas
parlamentares, um amontoado de nichos e feudos onde se faz qualquer negócio em
qualquer setor: saúde, educação, segurança e especialmente as grandes obras,
tudo vira objeto de troca. A ocupação dos cargos obedece a duas modalidades,
com ou sem “porteira”, seja fixa ou giratória, como dizem os que participam das
negociações.
Terceiro, assenta-se numa lógica partidária que abandona o
debate em torno de idéias e programas pelo embate para ganhar ou manter o
poder. E esclareço: trata-se do poder pelo poder, que independe daquilo que se
faz, se pensa ou se diz, pois todas as idéias se reduzem a peças de marketing e
toda ação tem sentido tático de destruir adversários numa disputa que não tem
fim nem finalidade para o que de fato importa, os reais interesses do país.
Esse sistema se reproduz e se protege. Basta ver as
sucessivas “reformas” políticas, arrumações nas leis eleitorais ou regras para
impedir a criação de novas formas de organização e participação política. A cada
ano criam-se e aperfeiçoam-se mecanismos para manter o domínio das oligarquias,
a hegemonia dos grandes partidos e o financiamento de suas campanhas.
Por tudo isso é que falei em 2010 e repeti em 2014, ao lado
de Eduardo Campos: é imprescindível e urgente um realinhamento político, com
base em uma agenda estratégica que dê conta dos principais desafios do país,
capaz de manter e institucionalizar conquistas, corrigir erros e assumir os
novos e grandes desafios desse século.
Propus que esse realinhamento aposentasse a Velha República,
que permaneceu incrustada no Estado brasileiro mesmo nos governos do PSDB e do
PT, dificultando os avanços que estes promoveram – sempre reconheci – nas áreas
econômica e social. Para sustentarem-se nessa Velha República, como já disse
FHC, esses novos partidos da democracia brasileira disputaram o posto de
líderes do atraso.
Só uma República renovada seria capaz de juntar os
fundamentos dos avanços já obtidos, o processo democrático, o tripé da
estabilidade macroeconômica e os programas de inclusão social e acrescentar a
eles um novo objetivo inadiável, a sustentabilidade socioambiental. Assim,
através de um Novo Pacto, o Brasil evitaria o retrocesso e a perda de suas
conquistas, superaria o atraso político e atualizaria seu ambiente
institucional para enfrentar as crises e rigores deste tempo em que o mundo é
sacudido pelas mudanças climáticas e pela crise econômica e social, uma
verdadeira crise da civilização.
Não foi por acaso que busquei Eduardo Campos quando o TSE (Tribunal
Superior Eleitoral) negou registro à Rede Sustentabilidade. Éramos duas figuras
que, até aquela época, em função das posturas políticas que tínhamos e de
nossas trajetórias de vida, nos imaginávamos como pontes entre os legados do
PSDB e do PT, até mesmo pela atitude de respeito que sempre cultivamos por seus
líderes maiores, Lula e FHC.
Não foi por acaso que propusemos um programa para a grave
crise que já se alastrava, falando das medidas duras a serem tomadas, mostrando
a verdade da crise econômica, política e social, mesmo correndo o risco de
sermos atacados com virulência, como ocorreu, sobretudo comigo, após a trágica
morte de Eduardo.
Não foi apenas o marketing selvagem, amplificado pelas
técnicas do boato e da calúnia em cada cidade ou vila do país, operando uma
destruição na “imagem” de um adversário político. Foi uma contração de todo o
sistema político, incluindo suas ramificações nos meios de comunicação e
organizações da sociedade, na tentativa de trancar do lado de fora qualquer
novo projeto de identidade política para o Brasil, qualquer proposta de mudança
e de futuro que não fosse a mera repetição do que já existe.
Nada de realinhamento das forças políticas para fazer a
transição e aposentar a Velha República. Nada de manter as conquistas, corrigir
os erros e encarar os novos desafios. Nada de nova governança baseada em um programa
de governo e agenda estratégica, nada dessa história de reunir os melhores de
todos os partidos. Nada de fim da reeleição, pela qual os mandatários se
dedicam mais a conseguir outro mandato do que servir ao país. O sistema
desconhece e joga fora a possibilidade de evolução e quer continuar sendo assim
como é, uma máquina de vencer eleições, uma couraça, uma repetição neurótica de
palavras vazias, um embate de “nós” contra “eles”, uma reafirmação de quem
manda.
Qual o resultado de uma campanha assim? O que acontece com
quem “ganha” dessa forma? E o que acontece com os eleitores, a sociedade, o
país?
Estamos, agora, diante das respostas. O agravamento de todos
os sintomas da crise já é visível. A insatisfação da população vai da
desesperança ao desespero. A mudança na equipe econômica parece ser
insuficiente para dar ao governo a credibilidade necessária à condução da
economia. A imagem da situação social é a dos tanques na rua, na Favela da
Maré. A enchente gigantesca no Norte e a seca rigorosa no Sudeste denunciam a
irresponsabilidade com a agenda ambiental e a falta de planejamento na produção
de energia e no saneamento. E a corrupção revela-se generalizada como um câncer
que se espalhou por todos os órgãos. Quantos minutos na televisão serão necessários
para fazer as pessoas voltarem a acreditar no mundo cor-de-rosa que os
“pessimistas” queriam destruir?
Muita gente vai para as ruas protestar. Há uma campanha
pedindo o impeachment da presidente que foi eleita há poucos meses. Compreendo
a indignação e a revolta, mas não acredito que essa seja a solução. Talvez o
resultado não seja o pretendido retorno à ordem, mas um aprofundamento do caos.
Quando o Congresso depôs Fernando Collor, assumiu o vice-presidente Itamar
Franco, que formou um governo aglutinando várias forças políticas incluindo a
parcela do PT que acompanhou Luíza Erundina. Em sua gestão, que tinha FHC como
Ministro da Fazenda, começou o Plano Real e a hiperinflação foi finalmente
debelada. Mas hoje quem domina as instituições são as parcelas do PMDB mais
envolvidas com as práticas e métodos que estão na gênese da crise.
As principais lideranças políticas de todos os partidos têm
agido com cautela e senso de responsabilidade com o país. O PT, é claro, quer
salvar o governo. Em parte da oposição predomina a lógica partidária e o desejo
de “sangrar” o governo e enfraquecê-lo para as próximas eleições. Mas há os que
compreendem a gravidade de uma crise institucional, os riscos de aventuras
autoritárias – de esquerda ou de direita –, a quebra da economia, a violência
descontrolada, enfim, um cenário totalmente indesejável. O governo é ruim, mas
temos a responsabilidade de manter não a ele, mas a democracia.
O impeachment seria uma punição ao PT, sem dúvida. Uma
resposta no mesmo padrão criado pelo partido quando estava na oposição: gritar
“fora” a qualquer governo (Sarney, Collor, Itamar, FHC e incontáveis governos
estaduais), com ou sem provas de corrupção, pela simples avaliação ideológica
de que eram governos impopulares ou contrários aos interesses dos
trabalhadores. Talvez até uma parcela dos que votaram em Dilma em outubro ou
até mesmo que fizeram parte dos núcleos ocultos de sua campanha estejam agora
alimentando a idéia de afastá-la para ganhar o poder por outros meios. Por
isso, é bom lembrar que, às vezes, a maior punição àqueles que ultrapassam
limites éticos para alcançar seus objetivos não seja interditar-lhes o objeto
almejado, mas retirar-lhes as regalias e deixá-los com a responsabilidade de
dar conta do que prometeram.
Essa é uma questão que será decidida no coração do povo, num
nível profundo em que a tosca propaganda e os gritos de guerra da direita e da
esquerda não penetram. Só os que fazem silêncio e ficam atentos conseguem ouvir
o que diz esse coração.
A questão política é: existe alguma possibilidade de navegar
na crise estabelecendo, na prática, uma nova governança no país? Creio que é
muito difícil. Mas talvez seja possível estabelecer alguns pontos de contato
entre os agentes reais dos processos políticos, econômicos e sociais, com base
na dura realidade dos fatos. A percepção de que estamos à beira de um abismo
que chama outros abismos, como bem adverte o ensinamento bíblico, nos remete à
responsabilidade de abrir novos caminhos e maneiras de caminhar. Afinal, se
todos estamos no mesmo barco de um país em profunda crise, devemos estabelecer
diálogos e projetos comuns em que governos estaduais e municipais, organizações
da sociedade, cientistas, empresários, movimentos sociais, comunidades, todos
se sintam dispostos a contribuir até que se consiga alcançar um realinhamento político que dê
novas bases de sustentação ao país.
Se não é possível ter uma agenda governamental, podemos ter
acordos setoriais e regionais em diversos temas. Mais uma vez, escolho os que
me parecem centrais.
Primeiro, seria necessário ter sério compromisso com a
transição para uma economia de baixo carbono. Mas é possível começar com as
urgências da crise ambiental que já mostra seu potencial de destruir a economia
urbana ou rural. Não adianta reconstruir a casa da mesma forma e no mesmo lugar
em que foi derrubada pela chuva. Agricultura, indústria, obras de infraestrutura,
todos já estão ameaçados pela crise. Eis
a oportunidade de mudar os métodos de produção e consumo. Os planos de contingência
e os comitês de gestão da crise hídrica já seriam um bom começo.
Segundo, aperfeiçoar os programas e mecanismos de inclusão
social. Programas de transferência de renda não podem ser tratados como
política de um governo ou um favor que será cobrado a cada eleição. É
necessário institucionalizar, colocar na lei: toda família em situação de
extrema pobreza tem o direito de recorrer ao Estado e receber ajuda enquanto
for necessário. Cabe ao Estado providenciar meios, como financiamento e
formação técnica, para que ocorra uma inclusão produtiva, ou seja, a pobreza
seja superada com educação e trabalho.
Terceiro, recuperação dos fundamentos macro e
microeconômicos em um ciclo estrutural e não puramente eleitoral. Aqui, a
sociedade e os governos locais podem fazer algo, mas é responsabilidade do
governo federal recuperar a credibilidade do país e o ambiente para o
investimento produtivo.
Mas o mais urgente, o sinal mais claro de um enfrentamento
direto da crise é o combate à corrupção, que hoje está espalhada em todos os
níveis da economia e da política. É preciso manter uma opinião pública exigente
e capaz de apoiar a autonomia dos órgãos de investigação, justiça, fiscalização
e controle. A liberdade de imprensa é condição essencial e deve ser defendida
sem hesitação.
Não podemos ser tolerantes com “acordos de leniência” que
livrem corruptos ou corruptores de suas responsabilidades a pretexto de
proteger as empresas. O Estado deve apenas dar condições legais para que os
setores da economia afetados pela corrupção se reestruturem. Empresas podem
fechar ou se reinventarem, as leis é que não podem ser mudadas para salvar a
pele de quem quer que seja. Num mercado aberto, não se exige apenas “menor
preço” para contratar uma obra, mas também a concorrência leal, com regras para
proteger o interesse público, o meio ambiente e a população, com mecanismos de
controle e total transparência.
Na área ambiental, o Ministério Público tem estabelecido, em
diversas ocasiões, os Termos de Ajustamento de Conduta, que estabelecem prazos
e metas, procedimentos e regras, começando pela imediata interrupção das
práticas danosas. Esse é o enfoque correto para manter as obras e serviços, mas
limpando a sujeira e desarmando os esquemas de corrupção.
Quem pode levar adiante acordos e pactos em torno dessas
diretrizes? Creio que cada um tem uma parcela de poder e governabilidade. Tenho
visto, em todo o Brasil, exemplos emocionantes de iniciativas de pessoas,
comunidades, movimentos sociais, organizações civis, prefeituras e governos
estaduais e também em alguns órgãos do governo federal. Não existe só corrupção
e maldade no mundo, temos que manter a esperança.
Enfim, tenho muitas dúvidas e algumas propostas. Não me
iludo, sei que estamos ainda no início dos problemas e o mais provável é que a
situação do país se agrave nos próximos meses. Mas insisto que devemos ter uma
agenda que possa gerar novos compromissos, uma posição – sem alinhamento
automático com governos ou oposições – a favor do Brasil. Política é serviço e
devemos contribuir para que tudo melhore.
A melhor energia para essa melhora é e sempre será a
manifestação da sociedade, pacífica mas indignada, contra tudo que ameaça a
honra de seu passado, a dignidade de seu presente e a esperança de seu futuro.
Das ruas vem sempre o alerta: acima dos interesses dos partidos e grupos que
almejam o poder estão os interesses do país e os que querem sinceramente
servi-lo não devem desperdiçar a oportunidade de mudar, antes de serem por elas
mudados.
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