Artigo de Fernando Gabeira
Recebi dois livros interessantes: Submissão, de Michael
Houellebecq, e Ordem Mundial, de Henry Kissinger. Aproveito uns dias de
resfriado para lê-los, mas só vou comentá-los adiante. Não sei se o resfriado
turvou minhas expectativas, mas vejo o mundo caindo ao redor: empresas
fechando, gente perdendo emprego e, como se não bastasse, estúpidos feriados.
Mas será que estar envolvido numa situação tão pantanosa me
obriga a fazer as mesmas perguntas, tratar dos mesmos personagens, dona Dilma e
seus dois amigos, Joaquim e Temer?
Nas últimas semanas deixei de perguntar apenas sobre o
ajuste econômico, que nos promete uma retomada do crescimento. Começou
enriquecendo os partidos e apertando as pessoas. Disso já suspeitava. Cheguei a
indagar se não era possível superar o voo da galinha, achar um caminho seguro e
sustentável. Constatei que lá fora também se faz a mesma pergunta, não a
respeito do Brasil, mas do próprio capitalismo. O sistema tem um futuro,
deságua em outra via de expansão?
Quanto à minha expectativa de um crescimento equilibrado,
encontrei respostas desconcertantes. Como a do economista australiano Steve
Keen, para quem o equilíbrio é uma ilusão e a economia tende a viver num
desequilíbrio constante, sem jamais afundar.
Existem muitas previsões sobre o que vai acontecer mais
adiante. A de Jeremy Rifkin pelo menos me agrada mais porque é a que mais se
aproxima das minhas toscas expectativas. E de uma ponta de otimismo que nunca
me deixa, mesmo no resfriado. Rifkin fala da internet dos objetos, da produção
descentralizada de energia alternativa, das impressoras 3D e dos cursos online.
Tudo pode fazer de cada um de nós um proconsumidor. Da produção em massa
haveria um trânsito para a produção das massas, descentralizada e cooperativa.
Aqui acompanhei, por exemplo, a prisão de Vaccari, o
tesoureiro do PT. Cheguei à conclusão de que foi motivada pela decisão do
partido de mantê-lo no cargo. Quando foi depor na CPI, todas as acusações já
estavam postas, incluídas as que revelam nexo entre propinas e doações. O
despacho do juiz Sergio Moro fala em quebrar a continuidade dos crimes,
evitando que o acusado mantenha uma posição em que, desde o caso da cooperativa
dos bancários (Bancoop), desvia dinheiro para os cofres do partido.
Bastava ao PT afastá-lo enquanto durassem as investigações.
Falou mais alto a fraternidade partidária. Tanto que os intérpretes oficiais
diziam com orgulho que o partido não abandonaria Vaccari na estrada.
Citado por Kissinger, o cardeal Richelieu, comparando a
sorte da pessoa com a de uma entidade política secular, afirma que o homem é
imortal, sua salvação está no outro mundo. Já o Estado não dispõe de
imortalidade, sua salvação se dá aqui ou nunca.
A maior interrogação ao ver o mundo desabando é esta: como
chegaremos a 2018, com um governo exaurido, crise aguda e um abismo entre as
aspirações populares e o sistema político?
A primeira pergunta é esta: com ou sem Dilma? O ministro
José Eduardo Cardozo diz que a oposição é obcecada pelo impeachment. Disse isso
ao defendê-la das pedaladas fiscais. Com a maioria dos eleitores desejando que
Dilma se afaste, sempre haverá um motivo. Hoje é pedalada, amanhã é pênalti e
depois de amanhã, escanteio, lateral, impedimento – enfim, é uma constante no
jogo.
Os 12 anos de governo do PT foram marcados por uma extensa
ocupação partidária da máquina pública. O Estado foi visto não só como o grande
empregador, mas também como o espaço onde os talentos individuais iriam
florescer.
Ao lado disso se construiu também a expectativa de que
grande parte dos problemas dependia da interferência estatal. Da Bolsa Família
aos empréstimos do BNDES, do patrocínio às artes à salvação do Haiti, da
construção de uma imprensa “alternativa” ao soerguimento econômico de Cuba –
tudo conduzido pelo Estado.
Com a ruína desse modelo, a oposição popular ao governo tem
a corrupção como alvo, mas revela também uma profunda desconfiança do papel
econômico do Estado, a ponto de alguns analistas a verem como réplica do
movimento Tea Party, uma ala radical do Partido Republicano nos EUA. Se olhamos
um pouco mais longe, para o colapso do socialismo, vamos encontrar algo mais
parecido com a realidade nacional. Foi muito bem expresso por um ministro
húngaro na aurora da reconstrução pela via capitalista: no passado havia uns
fanáticos que diziam que o Estado resolve tudo, agora aparecem outros dizendo
que o mercado resolve tudo.
Além da corrupção, sobrevive ainda uma expectativa num
Estado bálsamo, que cura todas as dores, resolve todos os problemas, traz de
volta as pessoas amadas. É compreensível que surja uma resistência apontando
para um Estado mínimo e que as esperanças se reagrupem em torno do mercado.
O que resultará disso tudo ainda é muito nebuloso. Tenho
consciência de escrever sentado numa cadeira ejetável. Mas, e daí? Quando você
mostra que a experiência do governo petista se esgotou, muitos protestam. Com
que ideias vão dinamizar a nova fase? Com que grana vão inventar um novo ciclo
de bondades balsâmicas?
Se Dilma sobrevive como um fósforo frio, isso é só um
problema imediato. É hora de começar a desvendar o futuro. Não tenho dúvida de
que todos os exageros, os erros patéticos, a arrogância, a desmesura, tudo será
cobrado até que se restabeleça um certo equilíbrio.
Viveremos o teatro fúnebre de um governo que não é mais
governo, de uma esquerda oficial petrificada, de jornalistas de estimação
analisando minúsculos movimentos mentais de um poder lobotomizado. Como diz um
personagem de Beckett, acabou, acabamos. Resta ao governo sonhar com um domingo
ideal em que, finalmente, voltadas para suas atividades normais, as pessoas o
esqueçam. Imagino a discreta festa palaciana: mais um domingo, ninguém se
lembrou de nós, viva!
Artigo publicado no Estadão em 24 de abril de 2015
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