Grande esperança da esquerda por décadas, o PT divorciou-se
das suas bases populares e frustrou as expectativas de quem apostava numa
transformação da política brasileira. Seu modelo de governabilidade, amparado
na aliança com setores conservadores e na barganha política, está exaurido, o
que explica a crescente insatisfação popular com governo Dilma Rousseff.
O diagnóstico é da deputada federal Luiza Erundina, que
ajudou a fundar o PT, foi prefeita da capital paulista pela legenda e desde
1998 está abrigada no PSB. Aparentemente, não por muito tempo. A parlamentar
está empenhada na construção de um novo partido: o Raiz Movimento Cidadanista,
inspirado no Podemos, da Espanha, e no grego Syriza. Na entrevista a seguir,
Erundina faz uma avaliação da conjuntura política e apresenta o norte do
movimento que ajuda a construir. Uma organização horizontal, sem lideranças ou
caciques partidários, norteado por princípios como o ecossocialismo. “Acredito
nisso. E não estou mais com idade para me enganar e viver uma fantasia”,
assegura, com brilho no olhar.
CartaCapital: Como entender a crise vivenciada pelo PT?
Luiza Erundina: É um ciclo histórico esgotado. O Partido dos
Trabalhadores surgiu com uma base social popular, dos sindicatos, do chão das
fábricas, das periferias dos grandes centros urbanos, da luta no campo pela
reforma agrária. Foi um momento áureo na história do Brasil, quando as camadas
populares passaram a exercer protagonismo na política. Esses grupos viam no PT,
além dos demais partidos de esquerda tradicionais, a possibilidade de
participar da política institucional. O PT representava, à época, uma esquerda
renovada. Um partido que surgiu de baixo para cima, e começou a eleger seus
primeiros vereadores, prefeitos, deputados e senadores. Mas esse ciclo se
esgota quando o PT chega ao poder, muito cedo, se vermos a história dos
partidos políticos no Brasil. Com a eleição de Lula, o PT deixou de lado a luta
concreta do povo, dos movimentos sociais, a luta sindical e pelos direitos
humanos. Aquelas lideranças populares deslocaram a sua militância da base para
as estruturas de governo, para os gabinetes.
CC: Houve uma excessiva burocratização da atividade
político-partidária.
LE: Exatamente. O PT deixou de ser um partido de massas,
dedicado à formação política das classes populares, dos trabalhadores, dos
sindicatos, das periferias. O foco da militância se deslocou. Eles saíram do
chão da fábrica, das periferias, dos movimentos sociais e campesinos. Eles
entraram para os espaços da política formal. Com isso, o partido perdeu a
novidade que carregava. O PT se divorciou de suas bases. Não diria que isso foi
intencional, uma ação planejada. A própria dinâmica do jogo político levou a
esse distanciamento, a esse divórcio com as bases. De repente, as lideranças
populares e sindicais estavam nos espaços institucionais, sem aquela mesma
liberdade, criatividade e ativismo que representava o PT. E não havia outro
partido que pudesse se aproximar e ser isso que um dia foi o PT. Essas forças
sempre estiveram aliadas ao PT, mas agora dentro da lógica do presidencialismo
de coalizão.
CC: E como se deu a formação dessa coalizão governista?
LE: Para garantir a governabilidade, o PT teve de se aliar a
um conjunto de forças políticas sem nenhuma identidade ou compromisso com seus
projetos e sua origem. Alguns partidos de esquerda ficaram como força auxiliar
desse governo de coalizão, mas na condição de minoria. Na maioria, sempre
estiveram forças políticas conservadoras. Certas figuras deram sustentação à
ditadura. Outras lideram legendas sem projeto partidário ou ideologia alguma.
Resultado: hoje temos 28 partidos com assentos no Congresso e outros tantos
disputando uma vaga. Durante certo tempo, o PT até conseguiu algum resultado.
Com o carisma que tem, Lula conseguiu administrar essa base tão heterodoxa e
heterogênea, mediante barganha, na troca de aprovação de medidas por cargos. O que
na prática isso significa? O PT abdicou de transformar a política brasileira.
Ele apenas reproduziu aquele modelo antigo, tradicional, de uma democracia
representativa, sem sustentação em mecanismos de democracia direta ou
participativa, representada pela sociedade civil.
CC: Seria possível governar de forma diferente?
LE: Fui prefeita de São Paulo pelo PT e governei por quatro
anos com minoria na Câmara Municipal, pois não cedi às pressões da barganha
política entre o Executivo e o Legislativo. Foi um período muito difícil, mas
consegui aprovar os Orçamentos, levar adiante políticas de saúde, educação e
transporte que marcaram a vida da cidade, com mecanismos de participação
popular. Meu governo não tentou silenciar os movimentos. Ao contrário, estimulou
que eles tivessem vida autônoma. E eles retribuíram. Houve momentos em que essa
turma acampou na Câmara, por quatro dias e quatro noites, num período de muito
frio, porque os vereadores queriam cassar o meu mandato. Não caí por ter uma
aliança concreta com a sociedade civil organizada.
CC: Lula não buscou essa aliança com a sociedade civil?
LE: O que Lula fazia? Ele colocava as lideranças sindicais
numa mesa para negociar. Criou uma cota de 10% das contribuições para as
centrais sindicais, esvaziando os sindicatos de base. Na prática, cooptou o
movimento sindical. Repare: o dia 1º de maio perdeu completamente o sentido. As
centrais não organizam mais manifestações, parece que nem há mais uma pauta de
reivindicações. Agora tudo não passa de uma grande festa, com shows, sorteio de
automóveis. E por quê? As centrais deixaram de ter uma relação de confronto com
o governo, de luta por novas conquistas. Matou-se a mobilização, o protagonismo
popular, a possibilidade de aliança com esses setores para fazer o enfrentamento
necessário das contradições que se impõem na sociedade.
CC: A chamada “Nova Classe C” foi uma das principais
beneficiárias dos avanços sociais das últimas décadas, mas agora engrossa a
rejeição ao governo Dilma Rousseff e parece ter incorporado o antipetismo. Por
quê?
LE: Os programas sociais não promoveram ninguém de classe.
Eles deram o fundamental básico: alimentação, a comida de todo o dia. Com o
boom da economia, tivemos uma expansão na oferta de crédito. No salário mínimo,
houve recuperação de perdas e um aumento real. Por outro lado, o sistema
tributário não fez isso, pois é regressivo. Proporcionalmente, paga mais quem
ganha menos. Portanto, não foi um governo que emancipou as pessoas. Ele apenas
as transformou em consumidores. Facilitou-se a compra do televisor de plasma,
do celular moderno, do primeiro automóvel. Mas eles querem mais. Não há uma
lealdade com os governos petistas. Num primeiro momento, até poderia haver, mas
na medida em que se sentem ameaçados de perder esse poder de compra, eles se
voltam contra. Até porque essas conquistas não foram resultado de uma luta por
direitos, eles não foram emancipados. Se a economia vai mal, eles perdem tudo.
Mas há um outro momento-chave para entender essa crise, que foram as
manifestações de junho de 2013.
CC: A insatisfação já aparecia com força naquele momento...
LE: Sim, havia uma insatisfação muito grande com os
políticos e com a política em geral. Tinha muitos jovens, mas também adultos,
que vinham agastados com as práticas políticas do País. A palavra de ordem era:
“vocês não nos representam”. Havia uma indignação muito forte com a corrupção.
E essa juventude se via sem alternativa, pois os partidos ligados à organização
dos estudantes também acabaram por cooptar o movimento estudantil. Na verdade,
a maior parte dos movimentos sociais e populares perdeu sua autonomia,
independência e legitimidade pela proximidade com os partidos no poder. Isso
lhes custou a perda do protagonismo. Além da corrupção, os manifestantes
reivindicavam saúde, educação e transporte de qualidade. Emergiu, ainda, uma
enorme rejeição aos partidos. Nenhuma legenda conseguiu se aproximar e tomar as
rédeas do movimento. Aliás, nenhum sindicato, nenhuma estrutura com organização
mais orgânica.
CC: A reação do governo foi inadequada naquele momento?
LE: Muito. Foi uma resposta superficial, improvisada e sem
sustentação alguma. Dilma prometeu, por exemplo, uma reforma política a ser
aprovada por uma Constituinte exclusiva. Não conseguiu emplacar, até por não
ter amparo legal. O programa Mais Médicos, embora importante, não é a solução
para os problemas da saúde. Enfim, ela apresentou um conjunto de medidas
improvisadas, que não se viabilizaram ou que eram incapazes de acenar para a
resolução dos problemas. Acredito que tanto o governo quanto o Legislativo
acreditaram que aquele movimento iria se esvair aos poucos e tudo voltaria a
caminhar como antes. Mas a cinza estava quente, a brasa ainda estava acesa. E a
insatisfação voltou a transbordar em março deste ano. Só que forma mais irada,
mais odienta, com fortes preconceitos e ameaças de retrocesso. Em meio ao “Fora
Dilma”, surgem mensagens de ódio. Até porque a direita está assanhada.
CC: Mas o que explica, então, a reeleição de Dilma em 2014?
LE: Na verdade, não havia uma alternativa. Aécio Neves, do
PSDB, representava mais do mesmo, além de ser um candidato desgastado, tanto
que perdeu no estado dele. Os candidatos tinham propostas muito parecidas, se
nivelavam. Tínhamos a Marina Silva, que ameaçou chegar ao segundo turno. Ela
apresentou o seu programa, mas acabou muito prejudicada, pois virou alvo
constante de ataques dos adversários. Veja o porcentual de votos brancos, nulos
e abstenções. Atingiu quase um terço do eleitorado. É muita coisa.
CC: Não havia uma diferença no campo econômico? Dilma
prometera não ceder à ortodoxia econômica, embora tenha feito o oposto ao
iniciar o segundo mandato, com o seu indigesto pacote de ajuste fiscal...
LE: É verdade. No primeiro mandato, Dilma adotou uma série
de medidas que não agradaram à ortodoxia financeira, ao mercado em geral. Por
isso, ela conseguiu se credenciar junto a um eleitorado que não era exatamente
o dela, mas queria evitar a política econômica do outro candidato, o velho
modelo tucano de governos anteriores. Mas não havia muita opção, ou era o
remédio petista ou o tucano. A proposta de Marina não empolgou, ela virou alvo
de ataques e não soube fazer a defesa adequada, além de não ser a cabeça de
chapa do PSB. Tornou-se candidata após a morte de Eduardo Campos. Há um
conjunto de circunstâncias que explicam o desempenho eleitoral. Mas o fato é
que não havia um candidato favorito, e a prova disso é que ficamos o tempo todo
especulando quem iria para o segundo turno.
CC: Em que medida o desgaste do PT no poder não traz
prejuízos para a esquerda como um todo?
LE: E que esquerda nós temos mais? Temos algum partido de
esquerda? Acredito que temos algumas pessoas, certos princípios, uma referência
socialista, uma utopia que alimenta a muitos. Mas eu não posso mais dizer que o
meu partido, por exemplo, é de esquerda. Aliás, o PT é de esquerda? O PCdoB
também? Se a gente se refere à história dessas legendas, às suas origens, aos
sonhos que eles alimentaram por décadas, podemos dizer que sim. Mas isso não se
reproduz nos dias de hoje. A esquerda está em xeque, porque envelheceu. Os seus
paradigmas, seus propósitos, a sua utopia se esvaziou. É um fenômeno mundial.
CC: A reforma política poderia trazer algum lampejo de
esperança?
LE: Participei de todas as comissões especiais dedicadas à
reforma política desde o meu primeiro mandato, iniciado em 1999. Estou
convencida de que qualquer reforma traria remendos num tecido já esgarçado,
absolutamente não funcional para o momento em que o País vive. Há expectativas
que surgem da evolução das novas tecnologias da informação. A internet está
criando novos valores, paradigmas e exigências. Hoje, temos um marco legal,
institucional e estrutural absolutamente obsoleto. De que adiantaria melhorar
uma ou outra norma eleitoral? Que diferença faria mudar uma ou outra regra
aplicada aos partidos, se eles carregam consigo toda uma cultura ultrapassada?
Há um esgotamento dos modelos de Estado, democracia e representação política.
Por isso, vemos essa rebelião na Espanha, na Grécia, em Portugal, na Itália, na
Tailândia. Mas há também o surgimento de uma nova onda, em que a juventude vem
movida por outros sonhos e utopias. Essa é uma experiência que começou na
Europa e surge agora no Brasil com o Raiz.
CC: O que este novo partido, em formação, traz de diferente?
LE: O Raiz é um embrião. Começou da luta de alguns
companheiros da Rede Sustentabilidade, que se frustraram com a proposta da
Marina Silva após ela fazer uma inflexão para o velho e ultrapassado modelo de
fazer política. Depois, o movimento ganhou a adesão de outros cidadãos
dispostos a participar. Qual é a grande novidade: o sujeito político deixa de
ser a liderança partidária, e passa a ser o sujeito coletivo. Segundo Hanna
Arendt, a política é a ação de sujeitos coletivos. E, atualmente, eles não
querem mais se expressar pela mediação de partidos, e sim por organizações
horizontais, articuladas em rede, de forma absolutamente plural. Mesmo com um
apelo à utopia socialista, suas estruturas, sua forma de organização, até para
disputar o poder, é absolutamente oposta a tudo o que está aí. Eu participei da
elaboração do manifesto do Raiz, vi o documento ser construído coletivamente,
em rede, pela internet e em encontros presenciais. Vi as teses sendo votadas
por todos os participantes. É real isso, eu presenciei. E esses jovens, alguns
com 16, 17, 18 anos, têm uma capacidade de análise política surpreendente.
CC: Essa turma estava nas manifestações de 15 de março?
LE: Não, não. Um ou outro poderia estar, mas não a maioria.
Quem foi para as ruas em 15 de março não parece ter o interesse de construir
nada, de propor uma outra coisa. Mas essa outra coisa vai vingar, pode
escrever. Até porque já está preenchendo um vazio nas mentes e nos corações das
pessoas. Esse é um projeto dos jovens, empenhados em fazer algo diferente. Não
é o fim da política, não é o fim da disputa pelo poder, é algo muito novo em
resposta à crise dos modelos antigos. É uma nova forma de organização política,
sem a forma de um partido, em que o sujeito não tem dono, não tem estrutura
orgânica e rígida. Vai seguir as regras eleitorais de formação de partido só
para se legalizar. Mas a prática política e a relação entre as pessoas é de
outra natureza.
CC: Mas qual é a proposta que orienta esse novo partido?
LE: Temos eixos que marcam a nossa proposta. É o bem-viver,
e não o viver bem. Trata-se de viver em harmonia com a natureza. Propomos o
ecossocialismo, uma proposta de desenvolvimento que leva em conta o equilíbrio
da natureza. Evidentemente, haverá um programa, para não ficar só nas ideias
abstratas. Mas a forma de fazer política é radicalmente diferente. Você viu o
encontro do primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, com a chanceler alemã,
Angela Merkel? Fiquei impressionada. Ele é um menino, bem jovem. Conseguiu
impor-se ao poder maior, forçou a Alemanha a negociar. Repare a diferença nos
semblantes. Merkel, com sua postura sisuda, e o menino Tsipras sorridente, com
uma desenvoltura enorme. Estamos vivendo um novo tempo. Gostaria de ter mais
tempo de vida para ver os frutos dessa experiência que está sendo gestada. O
poder é muito bom, necessário, útil, sem ele você não muda nada. Mas a questão
central é: a quem ele serve hoje? Queremos que sirva ao sujeito coletivo, e
isso é muito novo, é revolucionário. Claro que isso é uma mudança cultural,
leva tempo para ser gestada. Mas eu acredito nisso. E não estou mais com idade
para me enganar e viver uma fantasia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário