Artigo de Fernando Gabeira
Leio nos jornais que os marqueteiros decidiram humanizar
Dilma. Se somos todos humanos, o que significa humanizar Dilma? A chamada
humanização foi uma trajetória ascendente, na qual vencemos intempéries
naturais, construímos ferramentas, resolvemos complexos problemas da vida
social.
Como Dilma é considerada uma das mulheres mais poderosas do
mundo, a humanização pretendida pelos marqueteiros é uma espécie de saída do
Olimpo. Ela vai parecer agora uma pessoa comum, uma filha de Deus na nossa
imensa canoa furada que é o Brasil de hoje. Ao vê-la no seu passeio de
bicicleta, convenci-me de que era humana. Deuses não usam capacete. Não se
importam em se esborrachar no asfalto com seus etéreos cérebros. Dilma, como
todos nós, sabe que um choque pode embaralhar os já congestionados circuitos
mentais.
O processo de humanização se desdobrou numa entrevista a Jô
Soares, na qual, no Dia dos Namorados, Dilma discorreu sobre o ajuste fiscal e
suas preferências de leitura. Ela ainda não se humanizou como Obama, que vai
aos programas de televisão. Dilma só dá entrevistas no seu habitat, com os
tapetes, livros e, possivelmente, um leve cheiro de mofo do palácio.
O trânsito do divino ao humano é sempre muito complicado. Os
islamitas moderados sabem disso. O Corão (surata 9, versículo 5) aconselha
matar os politeístas onde quer que se encontrem. Os moderados afirmam que isso
é um texto do século VII, vale para um contexto da Península Árabica em guerra.
Mas a religião disse que o texto foi ditado por Deus, onisciente e eterno,
superior a todas as conjunturas históricas. Afirmar que o texto foi escrito por
seres humanos, falíveis, sujeitos às limitações de seu tempo, é assumir o risco
da heresia. Não creio que os marqueteiros queriam apenas mostrar a descida de
Dilma ao mundo dos humanos, que desfilam em suas bicicletas Specialized
cercados de seguranças de terno escuro.
Podemos imaginar outro caminho da humanização. Ele não
envolve a relação divino-humano, mas sim a relação entre pessoa e máquinas.
Humanizar, nesse caso, seria mostrar que Dilma não é a máquina de processar
números e tomar decisões. Ela tem as mesmas preocupações que todos nós e,
inclusive, leu a Bíblia na cadeia.
Nesse ponto, acho que o caminho dos marqueteiros não me
convence. Se Dilma é vista como máquina de decisões, o aparato precisa de
conserto, não de traços humanos. Grande parte de suas análises e decisões foi
para o buraco: a máquina nos trouxe a uma das maiores crises da História do
país.
Se aceitassem minhas ponderações, o problema dos
marqueteiros não seria humanizar Dilma, mas trans-humanizá-la, transformando-a
em máquina mais eficiente. Em vez da conversa com Jô que, na cadeia, quando não
estamos lendo a Bíblia, chamamos de cerca-lourenço, Dilma deveria estar
implantando chips em muitas partes do corpo. Seria capaz de acionar o aparato
do governo sem tantos ministros, detectar desvios antes que cheguem a R$1
bilhão, emitir ondas sonoras que acalmem o Congresso.
O projeto de trans-humanizar Dilma não significa que não
possa ir ao programa de culinária e mostrar como fritar um ovo. Há chips para
isso. Mas todos saberíamos que Dilma não é apenas humana. Como ela quase
arruinou nosso sistema energético, vamos confiar apenas no Sol para alimentar
os seus dispositivos. Cada vez que ela se aproximar do astro, como o robô europeu
Philae, saberemos que busca contato conosco:
— Alô Terra, vocês estão me ouvindo?
Nietzsche escreveu “Humano, demasiadamente humano”, para
analisar a morte de Deus e a solidão humana ao decidir sobre o certo e o
errado.
Seres humanos andam de bicicleta e aparecem no programa do
Jô, pessoal. Mas os marqueteiros de Dilma deveriam considerar aberto o debate
sobre sua humanização. Afinal, ela apenas desceria do Olimpo, apenas se
distanciaria da máquina?
O Deus bíblico é capaz de fazer perguntas, de ter
curiosidade, ao criar os bichos, sobre o nome que Adão daria a eles.
Aparentemente, a curiosidade é um dado contraditório num Deus que sabe tudo.
Contradição e curiosidade são dados humanos. Se até o Deus bíblico é curioso,
por que Dilma não faz perguntas aos seres humanos: o que achamos dela, do seu
governo e de seu próprio projeto de humanização. Mesmo uma eficaz máquina
trans-humana está arriscada a dizer “Olá Terra, vocês me escutam?”, e ser
respondida com um ensurdecedor panelaço.
O que os marqueteiros fariam ainda com Dilma para que pareça
humana? Pedalar não vale mais, porque ela está sendo questionada no TCU
exatamente por pedalar. Não precisamente na bicicleta, mas nas contas do
governo.
A história recente já produziu outro gesto de humanização: o
general Garrastazu Médici fazendo embaixadas num campo de futebol. Aprendemos
com o marketing político que os seres humanos praticam o futebol e o ciclismo.
Chega de humanizar, vamos trans-humanizar, encher os políticos de chips e
antenas. Prefiro encontrar Dilma e, ao invés de “bom dia, presidente”, saudá-la
com um lugar-comum nos encontros de terceiro grau: “Por favor, leve-me ao seu
líder”.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 21/06/2015
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