Artigo de Fernando Gabeira
Num dos fronts mais intensos no Brasil de hoje se trava uma
luta entre a transparência e o segredo. No petrolão, na CBF e, sobretudo, no
BNDES e algumas outras escaramuças.
Lula é um general do segredo e o PT, seu exército fiel. Só
assim se pode interpretar a alegria coletiva que ele e o partido demonstraram,
em Salvador, com a demissão de 400 jornalistas.
Na história da esquerda no Brasil, mesmo antes do PT, os
jornalistas sempre foram considerados trabalhadores intelectuais. Não estavam
no mesmo patamar mítico do trabalhador de macacão, e eram respeitados. Um
Partido dos Trabalhadores celebrando a demissão de trabalhadores é algo que
jamais imaginei na trajetória da esquerda.
Lula afirma que os jornais mentem, e parecia feliz com o
impacto da crise, criada pelo governo petista, num momento da história da
imprensa em que a revolução digital leva à necessidade de múltiplas
plataformas. O argumento de que os jornais mentem não justifica, num universo
de esquerda, festejar demissões de jornalistas. Por acaso Prestes achava que a
imprensa dizia a verdade? Não creio que Prestes e o Partido Comunista fossem
capazes de festejar demissões de jornalistas. O mais provável é que se
solidarizassem com eles, independentemente de seu perfil político.
Gastando fortunas em hotéis de luxo, viajando em jatinhos de
empreiteiras e ganhando fábulas por uma simples palestra, Lula perdeu o contato
com a realidade. E a plateia do PT tende a concordar e rir com suas tiradas.
Deixaram o mundo onde somos trabalhadores e mergulharam do mundo do nós contra
eles, um espaço onde é preciso mentir e guardar segredos diante que algo
arrasador: a transparência.
A batalha teve outro front surpreendente, desta vez no
Itamaraty. O ministro diretor do Departamento de Comunicações e Documentação
(DCD), João Pedro Corrêa Costa, tentou dar um drible na Lei de Acesso à
Informação e proteger por mais alguns anos os documentos sobre BNDES, Lula e
Odebrecht. Felizmente. o ministro fracassou. Mas no seu gesto revelou um viés
partidário, até uma contradição com a lei.
Nos 16 anos de Parlamento, passei 15 e meio na oposição. O
Itamaraty sempre me tratou de forma imparcial e gentil, independentemente da
intensidade momentânea dos embates políticos. Agia como um órgão de Estado, e
não de governo. Como as Forças Armadas, a julgar pela experiência que tive com
elas.
O Itamaraty é produto de uma longa história se olharmos bem
para trás, como fez Richard Sennett. Observando um quadro pintado em 1553,
Sennett descreve como o surgimento da profissão de diplomata foi um avanço na
História. Ele observa que com o surgimento da diplomacia se impõem novas formas
de sociabilidade, fundadas não mais em código de honra ou vingança. No seu
lugar entra uma espécie de sabedoria relacional baseada nos códigos de cortesia
política.
No Congresso do PT em Salvador e no Itamaraty as forças do
segredo travavam batalhas distantes no espaço, mas próximas no objetivo:
esconder as relações de Lula com as empreiteiras e o BNDES. Não estão unidos
apenas no objetivo, mas na negação dos seus princípios. Um diplomata tentando
contornar a lei para proteger um grupo político, um Partido dos Trabalhadores
festejando demissões em massa, tudo isso é sinal de uma época chocante, mas
também reveladora.
A batalha da transparência contra o segredo estendeu-se à
cultura. Venceu a transparência com a decisão do Supremo de liberar as
biografias. E venceu num placar de fazer inveja à seleção alemã: 9 a 0.
Não canso de dizer como admiro alguns artistas que
defenderam o segredo. Mas embarcaram numa canoa furada. E não foi somente a
transparência que ganhou. A cultura ganhou novas possibilidades. Com a
liberação de livros e documentários sobre brasileiros, uma nova onda produtiva
pode enriquecer o debate.
Se examinamos o comportamento do BNDES e da própria
Odebrecht, constatamos que têm argumentos para defender suas operações. Por que
resistir tanto à transparência, como o governo resistiu até agora? E,
sobretudo, por que ainda manter alguns documentos em sigilo?
Há muita coisa estranha acontecendo no Brasil. Todos se
chocaram quando se constatou o tamanho do assalto à Petrobrás. Os corruptos da
Venezuela, roubando dinheiro da PDVSA, a empresa de petróleo de lá, estavam
lavando dinheiro no Brasil. A julgar pelo volume de dinheiro, o assalto por lá
foi tão grande quanto o daqui.
O ministro do Itamaraty que quis ocultar documentos será
esquecido logo. Lula, no entanto, já passa algumas dificuldades para explicar
sua relação com as empreiteiras. E quanto mais se complica, mais estimula as centenas
de pesquisadores, acadêmicos, escritores e cineastas que querem mostrar a
História recente do País.
A batalha pela transparência nunca será ganha de uma só vez.
De qualquer forma, a lei de acesso e a liberdade para as biografias são dois
instrumentos.
Mesmo as pessoas mais indiferentes à roubalheira gostam de
saber o que se está passando no País. Existe nelas, como em quase todos, aquela
necessidade de mostrar que, apesar de sua calma, não são ingênuas.
Lula e o PT comemoram demissões nos jornais como se fossem
as únicas plataformas críticas. A internet dá aos petistas, por meio dos robôs
e compartilhamento entre militantes, uma falsa sensação de alívio. Na verdade,
o avanço tecnológico apenas ampliou o alcance dos jornais. E encurtou o espaço
da mentira. Como dizia um personagem de Beckett, não se passa um dia sem que
algo seja acrescido ao nosso saber. E acrescenta: desde que suportemos as
dores.
As dores da transparência são mais suportáveis que os males
do segredo, tramas de gabinete, truques contábeis, roubalheira no escuro,
conchavos nos corredores. Com a mesma alegria com que hoje festejam nossas
demissões, celebraremos o dia em que forem varridos do poder.
Artigo publicado no Estadão em 19/06/2015
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