Só um parvo juramentado ignora que não está na moda zelar
por sua própria história, no caso de quem tem uma história digna de zelo.
Ainda assim, é assombrosa a sem-cerimônia com que a
presidente da República tripudia sobre o seu passado.
Nesta segunda-feira melancólica, Dilma Rousseff não somente
se encontrou com Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA, como
adulou-o sem resquício de pudor. Na apoteose da bajulação, incensou-o como
“pessoa fantástica, com grande visão global”.
De 1970 a 1972, a valente guerrilheira Dilma amargou a
prisão por lutar contra a ditadura. Foi torturada com choques elétricos e
pancadas, padeceu no pau-de-arara, conheceu a barbárie.
Nessa época, o governo dos Estados Unidos apadrinhava a
ditadura brasileira que consagrara como orientação de Estado a tortura contra
adversários políticos. Kissinger era conselheiro de Segurança Nacional,
influenciando decisivamente a política externa da Casa Branca.
Em 1973, ele assumiu o posto equivalente ao de ministro das
Relações Exteriores. Como “conselheiro'' manda-chuva, na bica de se tornar
secretário de Estado, articulou com golpistas chilenos a deposição do
presidente constitucional Salvador Allende.
No Estádio Nacional, em Santiago, cidadãos foram torturados,
executados e tiveram os corpos sumidos para sempre. Um deles foi o exilado
brasileiro Wanio José de Matos.
Kissinger batizou e protegeu outras ditaduras que
exterminavam à margem da suas já autoritárias leis, como a da Argentina e a do
Uruguai.
Henry Kissinger simboliza o horror. É ídolo de viúvas da
ditadura. Abençoa conspiradores contra a democracia. Inspira golpistas que
rejeitam a soberania das urnas. Representa os valores contra os quais a
presidente brasileira dedicou boa parte de sua vida.
Num dia, Dilma chora pela memória do amigo e companheiro de
lutas Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, “desaparecido'' em 1971.
Noutro, rasteja diante de Kissinger, “pessoa fantástica''.
Lágrimas por Beto não combinam com o servilismo diante do
cúmplice dos assassinos de Beto.
O propósito do beija-mão seria trazer investimentos
estrangeiros ao Brasil.
Um erro. Não é fulminando a decência, ao sabujar o grande
articulador dos regimes da tortura e fiador da Operação Condor, que se constrói
uma nação.
Pouco antes de saber do convescote em Nova York, assisti
pela TV à semifinal da Copa América, triunfo do Chile sobre o Peru.
O jogo foi no Estádio Nacional, onde o brasileiro Wanio foi
visto pela última vez.
Continua lá, no antigo campo de concentração, pintado junto
à arquibancada, um apelo às novas e velhas gerações: “Um povo sem memória é um
povo sem futuro''.
Os estádios também dão suas lições.
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