Da Veja
Os terroristas não escolheram o Bataclan por acaso. No
infame comunicado de reivindicação dos atentados, o autointitulado Estado
Islâmico informou: "Oito irmãos, com cinturões explosivos e fuzis,
atacaram lugares minuciosamente escolhidos, no coração da capital
francesa". O Bataclan foi atingido "porque reunia centenas de
idólatras em uma festa perversa". É desnecessário buscar causas profundas
para a barbárie da sexta-feira 13 de novembro, porque só há superficialidade e
cegueira nas motivações criminosas para massacrar 129 pessoas e deixar mais de
350 feridas. Basta saber o que os fanáticos mais odeiam - e o que eles mais
odeiam, em poucas palavras, é um modo de vida que Paris praticamente inventou e
até hoje simboliza, oferecido com fartura a todos os que flanam por suas ruas.
Eles odeiam a liberdade, o direito de ir e vir, a música, a
literatura, o vinho. Odeiam o profano e o impuro. Odeiam a humanidade e suas
imperfeições. Odeiam um indesculpável vício iluminista do Bataclan, casa de
espetáculos inaugurada no fim do século XIX: estar instalado no Boulevard
Voltaire. Odeiam, por fim, algo que só poderia mesmo acontecer em Paris, e não
por coincidência: na quarta-feira 18, cinco dias depois do massacre, uma
vendedora ambulante do metrô entrou na Estação République, Linha 9, Pont de
Sèvres/Marie de Montreuil, para oferecer uma edição de bolso do Tratado sobre a
Tolerância, de Voltaire, aquele cujo nome batiza a avenida que corre acima dos
trens. O Tratado, um ensaio filosófico sobre o fanatismo religioso, foi escrito
logo depois da morte de Jean Calas, comerciante de tecidos de família
protestante huguenote, acusado de matar seu filho para impedi-lo de
converter-se ao catolicismo. Escreveu Voltaire: "Para que um governo não
tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não
sejam crimes; os erros somente são crimes quando perturbam a sociedade; eles
perturbam a sociedade desde que inspirem fanatismos: é preciso, portanto, que
os homens comecem a deixar de ser fanáticos a fim de merecer a
tolerância". O texto, de 1763, é vendido hoje a 2 euros no metrô.
À intolerância feita de terror do fanatismo islâmico os
parisienses responderam, nos primeiros dias depois da matança, com armas de
destruição em massa. No Le Petit Cambodge - restaurante no qual morreram pelo
menos doze pessoas e onde estavam dois brasileiros feridos -, um pequeno cartaz
foi colado próximo às centenas de velas e flores com uma declaração de guerra
irrecorrível: "Se tomar uns goles, ir a um concerto ou a um jogo de futebol
vier a se tornar um combate, então tremei, terroristas! Porque estamos superbem
treinados!". A capa do jornal satírico Charlie Hebdo, cujos jornalistas
sobreviventes dos ataques de janeiro andam escoltados, foi na mesma linha.
Sobre um fundo vermelho e o desenho de um homem perfurado por balas, de cujos
orifícios saem espumante e não sangue, lê-se a manchete: "Eles têm armas.
Que se danem, nós temos champanhe". A palavra "danem", aqui, na
tradução para o português, foi usada à guisa de outra expressão mais forte,
iniciada pela letra F. Entre coroas e pavios, alguns apagados pelo vento de
outono que varre as folhas secas eternizadas por Yves Montand, há garrafas de
vinho e cerveja. São santuários possíveis apenas em Paris, a odiada e hedonista
Paris dos terroristas.
O incontornável "Je suis Charlie" de janeiro foi
substituído pelo "#JeSuisEnTerrasse" e pelo
"TousAuBistrot", para deixar claro: se o objetivo dos
fundamentalistas era tirar as pessoas das mesas externas dos cafés, dos bistrôs,
não passarão (apesar do susto da quarta-feira, com a invasão de dois
apartamentos em Saint-Denis, na periferia, à caça de terroristas, que deixou
Paris amuada, preocupada e mais vazia do que na véspera). A seu modo insosso
porém firme, o presidente François Hollande resumiu o espírito do Brumário
francês de 2015: "A França que os assassinos queriam matar era a da
juventude, com toda a sua diversidade e seu único crime, o de estar viva".
Paris, revelam-nos seus monumentos, seus museus
(excepcionalmente fechados no primeiro fim de semana depois do massacre), suas
ruas, as canções, as placas em homenagem aos heróis tombados na II Guerra, tem
histórica resiliência. De cada derrota encontrou saídas. Não há cidade no mundo
mais identificada com a justiça e a civilização, conceitos lapidados com
combates e política, muitas vezes com sangue. O substantivo
"intelectual", no sentido de sábio engajado em alguma causa nobre,
foi usado pela primeira vez no fim do século XIX, quando o capitão de
artilharia Alfred Dreyfus, de origem judaica, foi erroneamente acusado de
traição. Na onda de preconceito que defendia a condenação do oficial, poetas,
escritores e cientistas, os "intelectuais" liderados por Émile Zola,
saíram em defesa de Dreyfus.
Diz o intelectual Pascal Bruckner, filósofo e escritor, a
respeito do 13 de novembro: "Não devemos mudar em nada nossos hábitos, e
sim viver como se o terrorismo não existisse. Devemos nos opor aos assassinos
com nosso desprezo de civilizados". De preferência, com uma boa taça de
vinho, falando de Voltaire, do Charlie Hebdo, de François Hollande e do Estado
Islâmico (ou Daesh, nas iniciais em árabe, como se acostumaram a dizer os
franceses) no Le Carillon, no Le Petit Cambodge, no À la Bonne Bière, no La
Belle Équipe, no Le Comptoir Voltaire, no Cosa Nostra e no Bataclan. Aux armes,
citoyens!, entoam, com ênfase, grupos pequenos, outros maiores, todos
evidentemente comovidos. Desafiam o veto às aglomerações, na cidade em estado
de emergência, gritando "Não temos medo!", "On n'a pas peur".
E encerram com a Marselhesa, o hit da temporada. Taças na mão, aux armes,
citoyens.
Trechos da reportagem de Veja desta semana que já está nas
bancas. Reportagem de Fábio Altman e Éric Garault, de Paris.
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