sábado, 21 de novembro de 2015

MASSACRE EM PARIS

Da IstoÉ
Poucas horas depois dos atentados que mataram 129 pessoas em Paris, uma mulher parou diante da boate Bataclan, um dos palcos das atrocidades, retirou um bloco de anotações da bolsa e leu em voz alta um poema do inglês John Donne: “Quando um homem morre eu sou atingido, porque pertenço à humanidade. Jamais me pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”. Seria difícil encontrar versos mais apropriados. O massacre perpetrado por terroristas do Estado Islâmico não atingiu apenas o coração da França. Ele lacerou toda a civilização. Por mais que a capital francesa tenha se tornado o alvo preferencial de um crescente número de extremistas, é a humanidade que se quer atingir. Os terroristas alvejaram quem não está em combate, aniquilaram os que não se envolveram com guerra alguma. Ao atirar a esmo, abatendo qualquer um, o EI acabou ferindo o mundo inteiro. A França não é uma escolha aleatória. Apesar de todas as suas imperfeições, ela encarna, em diversos aspectos, o que há de melhor nas sociedades desenvolvidas. Os franceses valorizam as liberdades civis, prezam a diversidade de religiões, respeitam o confronto de ideias. Com sua cólera sanguinária, o Estado Islâmico pretende destruir os preceitos que, desde o Iluminismo, subjugaram as trevas da era medieval. São essas trevas que os terroristas pretendem agora reavivar.
 A sociedade livre enfrentará, daqui por diante, uma longa, difícil e perigosa jornada. Na quinta-feira 19, os deputados franceses aprovaram, a pedido do presidente François Hollande, a ampliação do estado de emergência no país pelo prazo de três meses. A medida ainda precisa passar pelo Senado. Na prática, isso pode implicar em uma série de reduções de liberdades individuais, com o fechamento de pontos turísticos, a imposição de toques de recolher e a restrição à circulação de veículos por determinadas áreas. O estado de emergência não é previsto na Constituição francesa, mas foi criado por uma lei aprovada em 1955, durante a luta dos argelinos pela independência. O ponto mais polêmico é que ela permite a realização de prisões administrativas e buscas sem mandado judicial. Até a quarta-feira, ao menos 130 operações desse tipo haviam sido feitas.
Ao mesmo tempo, Hollande propõe mudanças na Constituição para “combater melhor o terrorismo”, incluindo medidas como o banimento de cidadãos franceses que retornam ao país, caso representem algum tipo de risco, e a inclusão do estado de emergência no texto. A imprensa francesa também especula que Hollande poderia alterar os artigos que tratam da cessão de “poderes excepcionais” ao presidente e do “estado de sítio”, em que parte das atribuições da polícia é transferida aos militares. O cenário lembra muito os eventos que se seguiram aos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, quando o Congresso americano aprovou, a pedido do ex-presidente George W. Bush, leis que permitiram a espionagem de cidadãos a fim de combater potenciais ameaças terroristas. Essas medidas culminariam, mais de uma década depois, no escândalo de grampos da Agência Nacional de Segurança (NSA), denunciados pelo analista Edward Snowden, hoje asilado na Rússia.
Enquanto as consequências políticas e sociais do terror ainda eram avaliadas, as polícias e as Forças Armadas europeias realizavam operações para tentar capturar suspeitos de ligações com os atentados de Paris. Na terça-feira 17, na Alemanha, a polícia chegou a prender sete pessoas. Os detidos, seis homens e uma mulher, estavam em Alsdorf, uma pequena localidade perto da cidade de Aachen, próxima às fronteiras com a Holanda e a Bélgica. Todos acabaram liberados horas depois. Na quarta-feira, uma operação da polícia francesa com mais de 100 agentes atravessou a madrugada em Seine-Saint-Denis, subúrbio de Paris. Ao invadirem o prédio onde se escondia o belga Abdelhamid Abaaoud, de 28 anos, apontado como mentor dos ataques, os policiais foram surpreendidos por uma mulher-bomba que detonou os explosivos amarrados ao corpo. No tiroteio que se seguiu, Abaaoud foi morto. A identificação ocorreu apenas no dia seguinte, após análises de impressões digitais. Outras sete pessoas, acabaram detidas.
Ao mesmo tempo, a França intensificou suas ações contra bases do Estado Islâmico na Síria, bombardeando, com ajuda dos caças Rafale, mais de 30 alvos apenas na noite de terça-feira. No dia seguinte, o porta-aviões nuclear Charles de Gaulle partiu em direção ao Mediterrâneo Oriental para dar apoio às operações na Síria. Com outros 20 caças Rafale a bordo, ele triplicará a capacidade de ação francesa na região.
Para entender o real significado do desafio que se coloca diante do mundo civilizado é preciso conhecer o inimigo que se quer derrotar. O Estado Islâmico é o oponente mais temerário que França, Estados Unidos e outras potências ocidentais jamais enfrentaram. O Isis nasceu em 1999 (leia artigo à página 54) e, desde então, nutriu-se das guerras no Iraque e na Síria. A instabilidade política nesses dois países, estimulada pelas investidas dos Estados Unidos, serviu de combustível para o avanço dos novos terroristas. “A invasão americana do Iraque desorganizou toda a região e permitiu a ascensão do Estado Islâmico”, afirmou na semana passada o senador democrata Bernie Sanders, pré-candidato à presidência dos Estados Unidos. “O Isis se beneficiou da fadiga da guerra na Síria, do desespero dos combatentes e dos vácuos de poder especialmente no norte do país”, disse à ISTOÉ Christa Salamanda, especialista em assuntos da Síria da Universidade de Nova York.
Quando os Estados Unidos mataram Osama Bin Laden, em 2011, o presidente americano promoveu um espetáculo midiático. Ele foi a público anunciar o fim da caçada ao líder da Al-Qaeda. “Daqui por diante, o mundo será um lugar mais seguro”, disse um jubiloso Obama. A declaração revelou-se uma farsa. “Em termos práticos, a morte de Bin Laden teve pequeno impacto sobre os grupos jihadistas do tipo Al-Qaeda, cuja maior expansão ocorreu depois”, escreveu o correspondente de guerra Patrick Cockburn, no livro “A Origem do Estado Islâmico”. O fim do terrorista que orquestrou os atentados de 11 de setembro de 2001 não só não teve qualquer efeito no combate ao terror como abriu espaço para a ascensão do Isis. Após a morte de Bin Laden, o presidente cometeria outro erro estratégico, ao afrouxar o cerco aos extremistas e demonstrar certo desinteresse pela facção que ganhava corpo. “Os Estados Unidos baixaram as armas e, desde então, não demonstraram qualquer esforço para destruir o Estado Islâmico”, afirma William Harris, professor de política na Universidade de Princeton e da Universidade do Oriente Médio, em Ankara, na Turquia.
O Estado Islâmico expandiu-se também porque é filho da era digital. Os terroristas se apoiaram nas redes sociais para divulgar crueldades como decapitações e afogamentos e passaram a recrutar fanáticos por meio de páginas como o Facebook. Daí surge a dificuldade em combater um inimigo que pode estar hoje em qualquer lugar – na periferia de Paris, num café em Nova York, num trem em Madri. “O Estado Islâmico representa um novo paradigma do terrorismo internacional, principalmente pelo uso sistemático e estratégico do cyberpower”, diz Sidney Leite, especialista em terrorismo da Universidade de Leiden, na Alemanha. “Basta uma pessoa e um smartphone carregado para fazer a guerra”, diz José Luiz Niemeyer, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec-RJ. “ Um terrorista pode organizar um atentado sem sair de um quarto de hotel.”
Para formar seu batalhão, os membros do Isis adotam estratégias eficazes de sedução. No primeiro estágio são localizados os alvos, jovens que demonstrem publicamente descrença na democracia ou que adotem um discurso de que a sociedade caminha para a perda dos valores. Na segunda etapa, em páginas e sites populares, os membros iniciam conversas de forma aberta com esses alvos, sem revelar a verdadeira intenção ou sequer que pertencem ao Estado Islâmico. A abordagem se dá em questões voltadas para os conceitos de liberdade, democracia e justiça. Aos poucos, o contato migra para áreas mais particulares do mundo virtual: uma conversa restrita via Facebook ou mensagens diretas no twitter. Quando se estabelece uma relação de confiança, a comunicação se dá via whatsapp ou snapchat, aplicativos preferidos pelos adolescentes. A partir daí começa o trabalho de doutrinamento. O Estado Islâmico se apresenta como o caminho para reencontrar a identidade perdida e descobrir os verdadeiros valores espirituais. Como combater um inimigo tão atento à angústia dos jovens?
Como nenhum outro grupo terrorista – e como a Al Qaeda jamais sonhou realizar – o Estado Islâmico levou a espetacularização de suas ações ao grau máximo de eficiência. A produção de vídeos macabros envolve aparelhos modernos, inúmeras câmeras, edição e qualidade de imagem que se assemelham à estrutura de trabalho das grandes empresas televisivas.  Enquanto os pronunciamentos do saudita Bin Laden eram feitos via webcam e transmitidos de uma caverna por um surrado laptop, os membros do Isis usam os mais avançados aplicativos de divulgação. “Os vídeos do Estado Islâmico se tornaram poderosas armas de publicidade”, diz o professor Niemeyer, que aponta outra referência histórica para efeitos de comparação. “As estratégias narrativas de vídeo remontam aos anos 30 do século passado, em especial à famosa cineasta nazista Leni Riefenstahl e ao próprio Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler.”
Os atentados em Paris mostraram que o mundo poderá mergulhar em um período de sombras. A intolerância é o mal que ameaça as conquistas que surgiram principalmente depois da integração europeia. Todos os oito terroristas identificados eram cidadãos europeus. Sabe-se que o passaporte sírio achado junto ao cadáver de um nono extremista chegou a Paris traçando a rota dos refugiados, mas autoridades suspeitam que o documento seja falso. Mesmo assim, Polônia e Letônia começaram a impor barreiras para refugiados, enquanto o primeiro-ministro eslovaco declarou que a imigração traz enormes riscos à segurança. Mesmo Bélgica, França e Itália estão limitando o acesso de estrangeiros, e no Reino Unido mais de 400 mil pessoas assinaram uma petição pedindo o fechamento de fronteiras. “Provavelmente não será permitido que imigrantes entrem na União Europeia da forma caótica como vem ocorrendo”, afirma Demetrios Papademetriou, presidente do Instituto de Políticas de Imigração no continente. “As conversas agora são todas sobre o endurecimento dos controles de entradas.”
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