Por Ruth de Aquino, Época
A memória curta encobre de lama nossos olhos d’água. Quem
chora hoje pela morte do Rio Doce, pelo drama de soterrados e desabrigados...
quem chora pela imagem dantesca, alaranjada e sólida que fez sumir comunidades
inteiras, antes ribeirinhas... talvez tenha esquecido que, num momento, lá
atrás, Dilma Rousseff, ministra de Lula nas Minas e Energia e na Casa Civil,
ganhou uma briga de foice com Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente.
Será que não está claro que optamos contra o verde, contra a
proteção ambiental e a favor da autonomia total e falta de fiscalização de
mineradoras, ao dar carta branca para um país com a cara da Dilma? Ninguém
lembra mais a rixa entre Dilma e Marina? Lula nomeou Marina ministra do Meio
Ambiente em 2003. Mas Dilma achava Marina uma xiita ambiental e a acusava de
atrasar licenças ambientais para “obras de infraestrutura” e hidrelétricas.
Qual era a resposta de Marina, hoje indisputável em face de Mariana?
“A discussão entre conservação do meio ambiente e
desenvolvimento para mim é um falso dilema. Ainda que na prática tenha de ser
superada, não é possível advogar pelo desenvolvimento sem promover a
conservação ambiental. As duas questões fazem parte da mesma equação.” Marina buscava
o desenvolvimento sustentável com uma obsessão: preservar a biodiversidade e a
vida. Sobre a demissão de Marina em 2008, Lula declarou: “O importante é que
tenha alguém isento para tocar o Plano Amazônia Sustentável. A Marina não é
isenta”.
Depois de cinco anos como ministra, Marina saiu desgastada.
Perdeu a luta histórica contra os transgênicos e contra a usina nuclear de
Angra III. Ao pedir demissão, citou a Bíblia: “É melhor um filho vivo no colo
de outro”. O filho era a política ambiental. Ela tinha brigado com outra mãe
cheia de energia, Dilma.
Na última campanha eleitoral, com Marina na disputa, Dilma
passou a discursar sobre meio ambiente. Mandou beijos e acenos para pequenos
agricultores, quilombolas, pescadores e indígenas, prometeu quintuplicar os
produtores de orgânicos, sem agrotóxicos. Defendeu assentamentos agrários.
Hoje, uma grande aliada de Dilma e sua ministra da Agricultura é Kátia Abreu,
empresária, pecuarista, porta-voz dos ruralistas.
O vazamento de 62 milhões de metros cúbicos de lama,
considerado a pior hecatombe ambiental de nossa história, não deve ser
atribuído apenas a Dilma. Mas não chamem de “acidente” o horror que cimenta as
águas e o solo e avança por 800 quilômetros até o mar. Em dez anos, cinco
barragens se romperam em Minas Gerais. Mas só agora, com o rompimento da
barragem da Samarco, controlada pela Vale e pela BHP, anuncia-se a busca de
formas alternativas de disposição de rejeitos de mineração.
O que houve foi um crime num país negligente que adotou uma
legislação frouxa com empresas como a Vale, que despejam milhões para financiar
eleição de parlamentares. As leis são tolerantes, as multas são ridículas e a
fiscalização é zero. A omissão dói. A região só foi sobrevoada por Dilma uma
semana depois. A atual ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, em reunião
com procuradores, sem saber o que prometer, disse: “As hidrelétricas estão
paradas por questão de segurança, okay? Então isso é passivo, o governo está
avaliando etecetera”. “Okay” e “etecetera”? Ninguém mais sabe falar no país?
Acho lindo que todo mundo se una, comovido, para salvar o
Rio Doce. Dilma já disse que ficará melhor do que era! Mas não posso me
conformar com o descaso oficial. Há 402 barragens de mineração cadastradas no
Brasil e o laudo de risco vem assinado pelas próprias empresas. Oi? Na barragem
de Mariana, estava “tudo bem”, segundo o laudo. Agora, Exército, caminhões-pipa
e helicópteros estão mobilizados. Bombeiros seguem urubus para encontrar
corpos. São feitos buracos na lama para liberar cheiro de decomposição.
No DNPM – Departamento Nacional de Proteção Mineral –, só há
cinco fiscais especializados em barragens. Cinco. De que adianta acionar “os
sistemas de alerta” à população, simular novos rompimentos, instalar câmeras e
monitoramento – se o negócio em si não é fiscalizado? O DNPM está “sucateado”,
segundo os próprios diretores.
Não vou falar das tartarugas, dos mamíferos, dos golfinhos,
dos peixes, dos corais. Não vou falar da recuperação dos olhos-d’água dos rios.
E nem das vítimas cujas vidas foram desviadas de seu leito normal. Só vou falar
do caráter nacional de leniência e impunidade que propicia “desastres
naturais”. Só vou falar de nossa responsabilidade. Vamos tirar a lama que cobre
nossos olhos e enxergar as escolhas que fizemos. Para decidir em que Brasil
queremos viver.
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