Artigo de Fernando Gabeira
A exigência de ouvir a verdade era ao mesmo tempo uma
crítica à sucessão de mentiras do grupo de Nixon e uma aspiração de milhões de
jovens americanos. O tempo passou, revolução digital no meio do caminho, e hoje
é possível afirmar que o pedido de Lennon transcendeu a juventude: é um amplo
desejo social.
O caso do governo Nixon contra Lennon tem relação com o
Brasil de hoje. Embora incurso em outros artigos do Código Penal, o governo do
PT nesses 12 anos tem a mesma recusa em aceitar a verdade. Independentemente de
nuances políticas, governos ilegais não têm outro caminho senão construir uma
narrativa de fuga, um cipoal de álibis. Essa incapacidade de nos dar alguma
verdade parece incomodar dois quadros importantes do partido: Patrus Ananias e
Jaques Wagner.
Nessa virada de ano, como se cumprissem uma promessa de
réveillon, disseram: um, que o PT precisava pôr a mão na consciência; o outro,
que o PT se lambuzou no poder. É uma reação tardia. Durante tanto tempo, a mão
esteve no bolso dos brasileiros, estranho que só agora se desloque para a
consciência. Jaques Wagner disse alguma verdade ao afirmar que o PT se lambuzou
no poder. Mas o fez de forma tão hábil que parecia atenuar a culpa por ser um
réu primário.
O PT teria chegado ao poder e reproduzido as práticas que
condenava nos outros. Acontece que isso é apenas um fragmento da realidade. O
PT, como nunca antes na História, transformou a corrupção num instrumento de
governo e base para se perpetuar no poder. Fundos de pensão, estatais,
empreiteiras, teles, tudo passou a ser fonte de recursos. Os aliados foram
comprados no Mensalão e ganharam lugares estratégicos para saquear a Petrobras.
O PT montou um esquema que produziu fortunas. Sua passagem
pelo governo, além de tornar a prática sistemática e abrangente, fez da
corrupção no Brasil um tema internacional com desdobramento em várias cortes.
Possivelmente, a tática dos dois quadros políticos, diante das resistências
internas, é apenas uma proposta gradativa da verdade. É uma tática que só
funciona quando o poder é o único a deter a realidade dos fatos. Mas hoje eles
são públicos, através de dados da polícia, delações, reportagens
investigativas.
A imagem que me vem à cabeça é a do colégio de freiras Stela
Matutina, onde minha mãe estudou. As alunas tinham de tomar banho de camisola.
Jamais se viam os corpos, apenas sombras, contornos, saliências. Eram virgens,
os corpos nus eram um segredo pessoal. Mas a realidade histórica desnudou o PT.
Por que revelar a varejo o que todos conhecem por atacado?
O gigantesco esquema montado pelo PT mudou a própria maneira
como a sociedade vê a corrupção. Nos últimos dias do ano, a PF informou que
houve um rombo de R$ 5 bilhões no Postalis. O tema desapareceu como se fosse a
luz de um foguete no réveillon. Não foi adiante porque R$ 5 bilhões parecem ser
uma mixaria diante das cifras gigantescas.
Um governo pode ser sincero e até meio incompetente. Mas,
quando escolhe o caminho ilegal e domina o espaço político, o estímulo ao
cinismo se propaga como um rastilho. Foi criado no Brasil um partido das
mulheres que só tem homens e uma única mulher como presidente. Uma observadora
da ONU, em entrevista sobre as Metas do Milênio, detectou essa jabuticaba. Mas
o fato passou batido como o rombo do Postalis. Um sólido bloco masculino
propondo um partido das mulheres e sendo reconhecido é apenas mais um dado do
cotidiano. Ficou tudo um pouco desconexo, os vínculos se dissiparam, e hoje o
campo da política tornou-se um obstáculo ao debate racional. Gira em torno de
si mesmo. O pior é que as escolhas econômicas indicam o abismo. O PT quer
produzir um vôo da galinha para se salvar nas eleições de 2016.
A galinha não consegue voar, mas eles descobriram algo para
lhe dar asas: as reservas monetárias do país. Querem metade delas, cerca de US$
174 bilhões. Falaram também que a China vai nos ajudar com empréstimos. Dois
dias depois, parece que a notícia chegou lá: a bolsa chinesa desabou com
relatos de queda na produção industrial. Nossos potenciais salvadores estão em
dificuldades. O uso das reservas terá repercussão negativa nos mercados.
Insistir no que deu errado achando que um dia dará certo,
fugir da verdade quando todos pedem um encontro com ela, é uma escolha
histórica. Nixon, pelo menos, renunciou. No último momento, de alguma forma,
assumiu a verdade.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 10/01/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário