Artigo de Rui Martins, Observatório da Imprensa
O Brasil tem uma tradição republicana laica, vinda dos
franceses positivistas e dos maçons, assegurando a separação entre a Igreja e o
Estado, integrada na Constituição de 1891. Não há uma declaração expressa
afirmando essa separação, mas na Declaração dos Direitos dos Cidadãos, a
Constituição deixava explícito no artigo 72, que, modificado em 1926 passou a
ser :
§ 7º Nenhum culto ou igreja gosará de subvenção official,
nem terá relações de dependencia ou alliança com o Governo da União, ou o dos
Estados. A representação diplomatica do Brasil junto á Santa Sé não implica
violação deste principio.
A Constituição reconhecia direito igual para todas as
religiões, que as pessoas seriam livres para seguir qualquer religião ou não
ter religião, que o ensino público seria laico nas escolas públicas e que só
seria reconhecido o casamento feito em Cartório.
Entretanto, a Igreja Católica, na época dominante e sem a concorrência atual dos evangélicos,
considerou-se prejudicada inclusive na questão do casamento que só teria valor
quando celebrado em cartório civil. Por isso, se mobilizou quando da elaboração
da reforma das Constituições de 1934 e 1937, através da Liga Eleitoral Católica
que pleiteava não só a validade civil dos casamentos feitos diante dos padres,
chamados casamentos religiosos, como a inscrição na lei da indissolubilidade do
casamento, para assegurar sua posição contra o divórcio.
Assim, embora se tivesse mantido a separação da Igreja e do
Estado, o clero católico obteve também o retorno do ensino religioso e a
administração dos cemitérios também por associações religiosas. Isso implicou
igualmente na introdução da palavra Deus, no preâmbulo da Constituição, mas
como argumentou o STF, sem poder normativo, isto é, sem que o Estado teista
implicasse numa união com a Igreja, como ocorre em muitos países, inclusive
Israel, e no Médio Oriente, que são Estados teocráticos.
Conquista da sociedade moderna
A separação do Estado da Igreja é uma conquista da evolução
da sociedade moderna, do fim dos regimes religiosos da Idade Média na Europa,
nos quais os próprios reis dependiam para serem coroados e governar do
reconhecimento e bênção do Vaticano, considerado representante do poder divino.
O Renascimento, o Iluminismo e a ruptura da unidade dos cristãos com a Reforma
provocando um pluralismo religioso cristão, as interpretações não religiosas,
seculares ou laicas da vida e da sociedade levaram à necessidade de se separar
o Estado, ao qual pertencem todos os cidadãos, da Igreja com seus diferentes
tipos de fé, seus dogmas, credos, crenças convivendo com o mundo real mas a ele
não pertencendo.
Se durante um século, desde a introdução por missionários,
as denominações protestantes foram minoritárias, contentando-se em ter apenas
alguns deputados estaduais em alguns Estados e não se interessando, por
tradição calvinista ou luterana, em intervir na legislação do Estado, (como
tinham aconselhado Cristo e o apóstolo Paulo) esse quadro mudou nas últimas
décadas.
O surto do evangelismo começou na América Central nos anos
60, onde a promessa bíblica de uma vida futura melhor, num céu ou paraíso e com
vida eterna, fizeram as populações mais carentes darem mais crédito ao discurso
de pregadores que aos dos políticos ou revolucionários. Mas tão logo os
pregadores perceberam o número de fiéis, obtido com suas promessas de
autênticos vendedores de loteamentos no céu e promessas abstratas, decidiram
ter uma parcela do poder temporal, numa espécie de ter o certo possível que o
duvidoso.
O centenário da Guerra dos Canudos nos leva a estabelecer
uma certa relação do evangelismo populista, diferente do protestantismo
clássico mais intelectualizado, com os seguidores ingênuos e beatos de Antonio
Conselheiro, que sem exclusão e perseguição, se tornaram pacíficos, passivos e
de grande abnegação. Ao mesmo tempo não se pode esquecer ser a religião um
lenitivo contra as dores da pobreza, das injustiças e das depressões,
funcionando o pregador como um psiquiatra dos pobres, ajudado pela magia dos
cantos, das orações e da fé exercida em coletivo geradora de maior confiança.
Ao contrário das denominações protestantes, cujos pastores
têm uma formação universitária teológica,os pregadores evangélicos se
improvisam ao se sentirem chamados para levarem a palavra ao povo. Uma parte
são aproveitadores da fé dos incautos e simples, mas outra parte age como tendo
sido escolhida pelo deus com os quais imaginam ter uma relação mais próxima. E
utilizando a sabedoria popular, mesmo sem formação escolar, conseguem encantar
seus seguidores. As igrejas evangélicas garantem ser um canal direto de contato
com deus.
Enquanto o protestantismo de origem européia e mesmo
americana, como os presbiterianos, conseguem ser liberais e sempre foram pelo
divórcio, aceitam o aborto e começam a aceitar o casamento homossexual e o
exercício do pastorado por mulheres, o populismo evangélico e sua inspiração
direta na Bíblia sem uma formação cultural, levam ao moralismo rígido de certa
forma próximo do moralismo muçulmano, quando proíbem as mulheres de cortar o
cabelo, de usar saias compridas e o véu na igreja, além de condenarem o
homossexualismo e a relação sexual antes
do casamento.
O evangelismo chegou ao Brasil pouco antes do golpe militar
e se expandiu com o apoio americano na compra de rádios e canais de televisão.
Com uma Igreja Católica distante do povo com uma mensagem antiquada e
condenando a teologia da liberatação para continuar junto do poder, os
evangélicos encontraram um campo fértil para sua mensagem de se poder falar com
deus e se ganhar uma vida eterna, com o perdão dos pecados, embora não se saiba
muito bem que pecados possam ter os pobres trabalhadores.
Próximos dos 30 % da população, hoje os pregadores
evangélicos se enriqueceram e sentiram ter também poder políticos. Alguns se
sentem chamados por deus, mas outros utilizam a crendice popular como alavanca
para terem cargos públicos e viverem melhor.
Tudo isso poderia ser muito simples, se os líderes
evangélicos ficassem só nos cânticos dos salmos e hinos e nas prédicas para
seus seguidores serem bons e abnegados. Mas não ficaram e hoje têm
parlamentares e políticos decididos a colocar nas nossas leis e práticas o que
imaginam ser da vontade de deus. E o Brasil já sente o risco de ter leis
reacionárias para punir os homossexuais e as mulheres que abortam.
A Igreja Católica que sempre desfrutou do poder no Brasil,
tendo apoiado o golpe dem 1964, namorar a possibilidade de ter uma Concordata
com o Vaticano, como ocorre na Argentina (clero igualmente reacionário) com
seus bispos sendo dignatários do Estado. Os evangélicos alimentam o projeto de
as igrejas poderem fazer propostas ao governo ou parlamento.
A polêmica lei 13.246
E é nesse contexto que a presidente Dilma decide agradar os
evangélicos sem desagradar os católicos, usando de seu cargo de dirigente de um
país laico para decretar uma data para pregação do Evangelho, se esquecendo de
que nem todos os brasileiros são cristãos ou religiosos.
Por ironia, a data escolhida, nesse gesto anti-laico, é o 31
de outubro – data do primeiro protesto
de Martinho Lutero contra as bulas papais e a venda das indulgências mas, ao
mesmo tempo, a data da festa céltica
pagã de Halloween levada aos EUA pelos irlandeses, onde ficou muito
popular com suas caveiras de abóboras, hoje comercializada, mas considerada
pelos evangélicos como festa satânica.
Na sua incrível capacidade de errar, nossa presidente violou
nossa tradição laica e querendo agradar aos evangélicos, que a fizeram em 2010
recuar depois de ter se declarado favorável ao aborto, não vetou uma lei levada
ao Congresso em 2009 pelo deputado Neucimar Fraga, ex-prefeito de Vila Velha,
no Espírito Santo. Depois de aprovada pela Câmara, a lei foi aprovada em 2015
pelo Senado com o apoio dos lobistas evangélicos.
A lei 13.246, que se esperava ser vetada por ser
inconstitucional num país laico, foi sancionada na surdina, dia 12 de janeiro,
pela presidente Dilma, numa tentativa de escapar do impeachment com o apoio dos
deputados evangélicos. Será que a OAB vai deixar passar esse atentado à
laicidade do Estado brasileiro?
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Rui Martins é jornalista e escritor
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