Artigo de Fernando Gabeira
Quando ouço a palavra cultura, saco minha tesoura. É
razoável que se pense assim num momento de crise aguda. Não entendo, porém, o
fim do Ministério da Cultura.
O governo Temer nasceu de uma emergência, teve pouco tempo
para se estruturar. Sua prioridade é correta: reconstrução econômica. Sua
tática, também: conquistar a maioria no Congresso para aprovar as medidas
saneadoras. Paga-se um preço, mas, enfim, é a única saída real. Compreendo,
portanto, que o governo Temer ainda não tenha uma política cultural. Esta é a
primeira crítica: é preciso ter política para, depois, definir o instrumento.
Secretaria ou ministério, qual o melhor? Depende. Quando
saiu da secretaria do MEC, o Ministério da Cultura foi rebaixado. Perdeu a
Roquete Pinto e a TVE. Gilberto Gil tentou recuperar a TV quando Lula a
recriou. Perdeu para uma corrente que dirigia a comunicação.
Na França os dois são unidos, Ministério da Cultura e
Comunicação. Superficialmente, o fim do ministério foi saudado porque muitos
viam nele apenas um espaço para cooptar artistas por meio de isenções fiscais.
O BNDES também cooptou empresários com juros subsidiados. Vamos fechar o BNDES?
Uma coisa é economia, outra é cultura, pode-se argumentar.
No entanto, elas não andam tão separadas. Num mundo de crescente produção
imaterial, a dimensão econômica da cultura é estratégica.
Existem menções a ela no plano de governo de Collor. Seu
programa elogiava grupos culturais com sensibilidade para a audiência e uma
estrutura empresarial. No mesmo parágrafo, critica os que se apoiam nas asas do
Estado para esconder sua mediocridade. Sem mediações adequadas, Collor falhou.
No governo Fernando Henrique, José Álvaro Moisés levava o
tema adiante, com o slogan “cultura é um bom negócio”. Hoje, acredito que não
apenas a tecnologia e o conhecimento científico transferem valor às coisas. A
cultura também o faz.
Trabalho com isso no cotidiano, documentando experiências do
que chamamos economia criativa. Recentemente, na Praia do Jacaré, na Paraíba,
mostrei a história de um saxofonista que ergueu uma comunidade de negócios em
torno dele. Todas as tardes, às 18 horas, ele sobe num barquinho e toca o
Bolero de Ravel. Com o tempo, o lugar superlotou, surgiram lojas bares,
restaurantes. Num deles, há um peixe à Maurice Ravel no cardápio. Mesmo quem
não gosta de Ravel ou mesmo do peixe que leva seu nome reconhece que, de uma
certa forma, é a cultura que move o lugar.
Os chamados pontos de cultura, do programa do PT, que não
conheço na totalidade, já revelaram para mim um caso de êxito em Arraial do
Cabo. O ponto de cultura transformou-se num ponto de encontro e venda do
artesanato local.
É preciso que Temer mostre a sua visão para que seja um
parâmetro para a crítica. O debate está todo concentrado no financiamento
indireto de artistas, como se fosse o único tema.
O patrimônio artístico e histórico do Brasil vive momentos
difíceis e ameaçadores. Digo porque trabalho também com ele, visitando de
estátuas do Aleijadinho ao sítio de Burle Marx. Pode-se argumentar que nosso
patrimônio não tem o mesmo valor do de países mais velhos. Mas é o nosso
patrimônio, um fragmento no mosaico da diversidade humana.
Intelectuais como Mário de Andrade percorreram o Brasil
colhendo expressões culturais, outros, como Rodrigo Melo Franco, lutaram para
que os monumentos fossem preservados e vistos. Na confluência de Estado e
cultura, o designer e pintor Aloisio Magalhães trabalhou para inventar um
instrumento de gestão que atendesse a todos.
Acabar com o MinC e anexá-lo de novo à Educação, pôr tudo
nas mãos de um deputado não familiarizado com o problema, é uma escolha
problemática.
A TV estatal tem traço de audiência, dinheiro jogado fora.
Por que não fazer dela uma incubadora de pequenas empresas culturais? Isso é só
uma possibilidade. Sei que passível de condenação, sob o rótulo de
mercantilismo. O mecenato é frágil. Fora do mercado, não há Estado que nos ampare.
Ainda mais falido e com grandes problemas sociais.
Existem situações em que o Estado financia um grupo
artístico. Mas grupos de reconhecido prestígio cultural, como é o de Pina
Bausch, na Alemanha. Os americanos promoveram um tour mundial do Modern Jazz
Quartet. Em plena recessão, comissionaram o escritor James Agee e o fotógrafo
Walker Evans para produzir um belo livro: Vamos Elogiar o Homem Comum.
Tudo isso é calculado. No caso do Modern Jazz, como
exercício do soft power, que também, dentro dos limites, podemos exercitar. No
caso do livro, foi uma tentativa de levantar o moral, mostrando a força do
homem comum na devastadora crise econômica.
Se o problema for só dinheiro, é preciso lembrar que se pode
ter uma estrutura mais ágil e ampliar as parcerias com a iniciativa privada. E
com boas ideias, em vez de apenas isenções.
É preciso vir mais devagar. Os novos dirigentes devem
perceber que fecharam vários ministérios e só dois deram o que falar: os da
Cultura e da Ciência. Espero que não confundam a cultura com um grupo de
artistas. Ela envolve também milhares de trabalhadores na indústria e,
sobretudo, o afeto de grande parte dos brasileiros.
No Brasil, muita coisa ainda gira em torno desta quase
ficção: direita-esquerda. Se acham, por exemplo, que um Ministério da Cultura é
algo de esquerda, lembrem-se de André Malraux no governo De Gaulle. Embora
tenha lutado na Guerra Civil Espanhola, não era de esquerda. De Gaulle, muito
menos.
José Serra assumiu a política externa. A cultura tem um
papel econômico e simbólico em nossa relação com o mundo. Não conheço sua
opinião, mas seria interessante saber como, para ele, cultura e política
externa se entrelaçam, que instrumento é o adequado para o governo.
Por favor, saquem a sua tesoura, mas também algumas ideias.
Não comecem cortando no pescoço.
Artigo publicado no Estadão 20/05/2016
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