Artigo de Fernando Gabeira
A melhor briga é aquela que se pode evitar — diz um mestre
do kung fu. No campo das ideias, no entanto, a luta é revigorante, desde que
aceitemos a máxima de Tancredo: as ideias brigam, as pessoas não. As raposas do
PMDB acabaram com o Ministério da Cultura. Acabaram com o de Ciência e
Tecnologia. Mas não explicaram qual a sua política em ambos os setores.
Todos sabemos que a prioridade é econômica e que para
realizá-la na plenitude é preciso ter base sólida no Congresso. É preciso
também muito estômago, mas, o que fazer, são deputados e senadores escolhidos
em votação popular. Realizar essas prioridades, no entanto, é como reger uma
orquestra. O maestro pode ser talentoso ou não, sua regência está diante de
nós. Não me considero intransigente. Se Temer mostrar qual é sua política
cultural e científica e me convencer de que outros instrumentos, além de ministérios,
possam realizá-la melhor, vou examinar seus argumentos. Não foi isso que
aconteceu. Quem anexa Cultura à Educação e entrega tudo nas mãos do
Mendoncinha, atropela, na verdade, um debate histórico sobre esses temas no
Brasil. Aliás, trato-o assim porque convivi com seu pai na Câmara, o Mendonça.
Na visão simplificada, o Ministério da Cultura financiava artistas pró-governo
através da lei de isenção fiscal. Mas o BNDES também financiava empresas com
juros subsidiados. Vamos fechá-lo? A criação do Ministério da Cultura por
Sarney é o resultado de muitos esforços. Um deles, creio, foi o de recolher e
preservar nosso patrimônio artístico e histórico. Outro passo com o designer
Aloísio Magalhães foi a busca de um instrumento que mediasse estado, cultura e
mercado. Ao se transformar de secretaria em ministério, o MinC perdeu, de cara,
o aparato de comunicação: rádio e TV.
Adiante, Gil tentou recuperar a TV, mas o governo a queria
para a propaganda política. Discordei do primeiro ministro da Cultura, Celso
Furtado, por ter apoiado a censura de “Je vous salue, Marie’’, um filme de
Godard que foi proibido por Sarney. Jamais passou pela minha cabeça condenar o
instrumento que Celso dirigia. Talvez nem concordasse com sua política. Tinha
um viés negativo em relação à indústria cultural, como se produzisse apenas
distorções. Collor fez uma opção mais próxima do mercado. Mas o fez sem
trabalhar mediações e levou o setor cultural a se desorganizar ainda mais. No
governo FHC, voltou-se ao tema do mercado, com o slogan “cultura é um bom
negócio’’.
A experiência petista foi formular a política ouvindo os
produtores culturais ao longo do país, mais de 2 mil entidades. O objetivo era
também estabelecer uma ampla frente de apoio político. O que quer o governo
Temer? Imagino que o sonho dos burocratas que o cercam é apenas cortar gastos.
Mas mexer em cultura e ciência, fechando dois ministérios, significa abrir
longa discussão. Diante das circunstâncias, sou a favor, como quase todo mundo,
do corte de despesas estatais.
Quando ele se faz suprimindo e reagrupando ministérios, sua
lógica não pode ser medida só em grana. Qual a política de Temer para cultura e
ciência? O departamento de distribuição de culpas da esquerda já aponta para os
defensores do impeachment: olha o que fizeram. Lembro-me sempre de um ministro
húngaro, após a queda do Muro de Berlim: havia uns fanáticos que achavam que o
estado resolve tudo, entraram outros que veem no mercado a solução para todos
os problemas. Isto significa que a luta pelo equilíbrio deve continuar,
sobretudo após a queda de um dos polos da contradição. A ideia de que cultura e
ciência não têm importância num país falido é um equivoco. Ao lado da
tecnologia, essas duas dimensões conferem mais valor ao nosso trabalho. O caso
da Estrada Real, por onde o ouro era transportado de Minas até Paraty, é apenas
uma de centenas de exemplos. Era apenas um espaço vazio de memória. Quando as
pessoas perceberam que estavam percorrendo um caminho histórico, sentiram algo
que é fundamental na nova ideia do turismo: aprenderam alguma coisa, percorrem
um novo espaço. A cultura conferiu um valor novo à região.
O período que nos antecedeu foi muito polarizado. Se
reduzirmos a cultura a uma contradição esquerda-direita, corremos o risco de
jogar fora o bebê com a água do banho. Ela tem um papel na reconstrução
econômica. É uma poderosa indústria, conta com milhares de produtores
independentes. A maioria deles não depende do governo. Não estamos condenados a
exportar commodities. Bem articuladas, cultura e relações exteriores podem
ampliar nosso alcance. Atribui-se a um oficial franquista, na Guerra Civil
Espanhola, esta frase: quando ouço a palavra cultura, saco minha pistola.
Vivemos tempos diferentes. Quando se ouve a palavra cultura, saca-se a tesoura.
E é compreensível, até no orçamento das famílias. Não é preciso ter uma câmera
na mão, uma ideia na cabeça. Os dirigentes precisam de uma tesoura na mão e uma
ideia na cabeça. Sem uma ideia, a tesoura parece uma pistola.
PS: No fim da tarde de sábado, soube que o governo estava se
movimentando para resolver o problema. Fala-se na volta do Ministério. Ouvi a
hipótese de uma secretaria especial. Há boa vontade, mas ainda falta uma visão
das linhas gerais de sua política.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 22/05/2016
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