Artigo de Fernando Gabeira
“Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.”
Concordo com esse verso de Drummond, mas as coisas, às vezes, se misturam com
as pessoas, como o sutiã, o chapéu e os óculos. E às vezes aterrorizam a vida
das pessoas como a bomba, ou anunciam novos tempos, como o transistor,
computadores.
Lembro-me da aparição do ar-condicionado e de como os
restaurantes brasileiros anunciavam com orgulho: temos ar-condicionado. A
tornozeleira eletrônica é um dado novo no cotidiano brasileiro. Teoricamente
pode ajudar o país a atenuar o problema carcerário. Permite que um pequeno
número de funcionários possa controlar muitos condenados, reduzindo a
superlotação e economizando os custos com tanta gente presa. Como todas as
outras coisas, a tornozeleira pode ter um uso equivocado.
Para mim foi surpreendente o pedido de Rodrigo Janot para
colocar tornozeleira eletrônica em José Sarney, um ex-presidente de 86 anos. O
tema nos chegou pela metade. Janot pede a prisão de parte da cúpula do PMDB,
inclusive Renan Calheiros e Romero Jucá. Eduardo Cunha também teve sua prisão
preventiva pedida. Seu caso é óbvio. Mas os outros ainda dependem de dados que
até o momento não conhecemos.
O que se sabe de Sarney, pelas gravações, é que aconselhou
Sérgio Machado a falar com um amigo de Teori Zavascki, para influenciá-lo. E é
contra a delação premiada para quem esteja na prisão. O que Sarney disse, nas
gravações, é que um projeto de mudar a delação premiada mostraria que,
realizado com presos, esse instrumento legal parece tortura.
Um vice-líder do governo Dilma foi mais longe: a delação
premiada é a tortura do século XXI. Tanto ele como Sarney conhecem pouco de
tortura e menos do século XXI. Com a polícia investigativa e bem equipada, o preso
é confrontado com tantas evidências que a delação premiada acaba sendo um
alívio para ele. Sempre defendi a delação premiada, inclusive contra a bobagem
de Dilma ao compará-la ao caso do delator Joaquim Silvério dos Reis. Aquilo
aconteceu na Inconfidência Mineira; uma coisa são conspiradores anticoloniais,
como Tiradentes, outra coisa são políticos e empreiteiros que assaltaram a
maior empresa nacional. No debate sobre a delação ironizo os que se colocam
contra ela, ou mesmo os que querem reduzir seu alcance. No entanto, não vejo
crime ao discordarem.
A cúpula do PMDB é conhecida de todos. Muitos acham que, por
alguma razão, seus expoentes deveriam estar presos. Isso não exime os
procuradores de apresentarem as razões de uma forma inequívoca. Para começar,
são mais hábeis que o PT e, habitualmente, não se defendem atacando, mas com
base em alguns princípios do estado de Direito, como por exemplo a liberdade de
opinião.
Por mais problemáticas que sejam as propostas sobre acordo
de leniência e redução do âmbito da delação premiada, ambas dignas de um
combate sem trégua, é impossível deixar de ver nelas o que, para mim, é a única
condição em que um parlamentar merece o foro especial: o direito de falar e
votar livremente.
Esperamos Janot durante todo esse tempo. Ele andou muito
lentamente com a parte da Lava-Jato que lhe compete; isto é, a que envolve
políticos e ministros. De repente, veio de uma forma brusca, como se quisesse
compensar sua lentidão anterior.
Quem se interessa pelo futuro da Lava-Jato a vê como um
excelente trabalho de combate à corrupção e um alento democrático ao demonstrar
que a lei vale para todos. Qualquer deslize não é apenas ameaçador para os
acusados, mas sim para aqueles que desejam o sucesso da operação e querem
resguardá-la de todo tropeço inútil. A resistência é dura e bem articulada.
Nas gravações, Sérgio Machado fala da necessidade de
preservar não apenas este governo, mas todos os que virão. Ele propõe uma
espécie de vacina contra a Lava-Jato, para que se possa trabalhar em paz, livre
de operações desse tipo. É uma espécie de sonho de consumo do sistema político
brasileiro: colocar-se acima da lei.
É um sistema político que merece ser implodido. Mas nunca
realizamos nossa tarefa num vazio histórico: há uma crise profunda e um esforço
de reconstrução econômica. Mesmo sem esses componentes, pedidos de prisão
precisam ser fundamentados e, em caso de vazamento, expostos na totalidade do
texto.
Fixei-me na tornozeleira eletrônica de Sarney não só por sua
história, mas também por sua idade. Aos 86 anos, a teia de limites que a
própria biologia nos impõe — reumatismo, varizes, crises de gota — é muito mais
eficiente do que os painéis de controle eletrônico.
Se tudo for bem apurado e processado, haverá cadeia para
todos os envolvidos no processo de corrupção, inclusive o montado por Sérgio
Machado que drenou milhões da Transpetro. É preciso realizar esse trabalho de
depuração, em plena crise econômica e dentro dos parâmetros do estado de
Direito, propostos pela Lava-Jato: a lei vale para todos. Que o diga o Japonês
da Federal, que de tanto levar gente presa, acabou preso na própria PF de
Curitiba.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Jornal O Globo em
12/06/2016
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