Helena Chagas, Os Divergentes
O último ato do impeachment de Dilma Rousseff, que começa
nesta quinta-feira no Senado, não passará à história apenas como marca abrupta
da interrupção de um mandato, e nem só como aquela virada de página nos 13 anos
de governos petistas que, para o bem e para o mal, mudaram a cara do Brasil. No
longo prazo, quando arrefecerem os ânimos e as paixões políticas, é possível
que reste como marca disso tudo a falência do sistema político baseado no
presidencialismo à brasileira, ou de coalizão.
Já começam a circular nos bastidores do Congresso propostas
para tornar mais difíceis e complicados os trâmites dos processos de
impeachment presidencial, atualmente regidos pela Constituição e por uma lei da
década de 50. Afinal, gato escaldado tem medo da água fria. Seria, porém, mais
uma daquelas soluções de tirar o sofá da sala, pois o problema é bem mais
complexo.
A facilidade com que o Legislativo está mandando para casa
uma presidente eleita por 54 milhões de votos apenas um ano e meio atrás vem
carregar com fortes tintas parlamentaristas um presidencialismo até há pouco
tempo criticado como imperial e personalista. Vai ficar difícil, daqui para
frente, remover essa tinta toda e voltar a fazer o sistema político e
institucional funcionar como antes.
Se, há 24 anos, o impeachment de Fernando Collor por
corrupção representou, apesar de todos os receios da época, uma afirmação da
vitalidade das instituições de nossa então recém-nascida democracia, talvez
agora o recado venha com sinal inverso: as instituições políticas ainda
funcionam, mas dão sinais de exaustão.
Estamos à frente de um jogo jogado, e é perto de zero a
chance de o Senado não aprovar o afastamento definitivo da presidente da
República na semana que vem, ainda que sob a questionada tese do crime de
responsabilidade. A cada dia se fala menos em pedaladas, e ninguém esconde que
Dilma está perdendo o mandato pelo conjunto da obra na política e na economia,
pela impopularidade e, sobretudo, pela falta de capacidade para lidar com
políticos, partidos e parlamentares – talvez seu único traço em comum com
Collor. É, por outro lado, uma habilidade que seu substituto tem de sobra, o
que provavelmente o deixará fora do alcance de um impeachment nesses dois anos
e meio de mandato.
Saindo de cena os personagens, porém, restam os mecanismos
institucionais. E o que o impeachment de Dilma está mostrando é que, no Brasil
do século XXI, não é difícil defenestrar um presidente da República dentro das
regras do jogo. A receita começa com um presidente da Câmara ousado, forte,
hostil. Pela Constituição e pelo regimento, esse sujeito tem superpoderes que
vão além do controle da pauta da Casa. Pode, autocraticamente, desengavetar um
pedido de tramitação de um impeachment
presidencial. Com isso, bota a bola de
neve para rolar. Junte-se aí ingredientes como um punhado de bancadas
insatisfeitas, uma crise econômica, uma boa dose de incompetência política dos
articuladores do governo, certo apoio do establishment econômico, e tem-se logo
a avalanche.
Impossível não imaginar: será que agora, que aprendeu a
receita, o Congresso não vai querer fazer de novo, e sempre? O governo não deu
certo, tira o presidente. É um modelo muito semelhante ao do parlamentarismo,
só que aqui o sujeito tem mandato certo, foi escolhido pelo voto direto, em
eleições que mobilizam todo o país e colocam em teste diversos programas de
governo (ainda que isso seja coisa rara hoje em dia). Mas quem garante que o
roteiro, criado para ser excepcionalidade, não vai se tornar corriqueiro?
Elege-se alguém, esse alguém pisa na bola, é cassado pelo Congresso e o país
acaba governado por outro alguém, o vice, que pode ter propostas diametralmente
opostas do ponto de vista ideológico, econômico, espiritual, de costumes, etc.
Há sempre risco de frustração, por pior que tenha sido o governo eleito.
Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
Até agora, Michel Temer vem mantendo boas condições de governabilidade pelo
apoio recebido do Congresso – com o qual tem uma relação de dependência - e do establishment político e econômico, esperançoso
de dias melhores na economia após o ajuste fiscal. Mas a aprovação popular
ainda não chegou. Pode chegar e pode não chegar. Governos não-eleitos que
executam programas diferentes daqueles saídos das urnas têm menos gordura para
queimar e podem mais facilmente perder a legitimidade. São também passíveis de
serem engolidos pela briga das forças políticas que passam a mirar as próximas
eleições.
Mas a principal característica do governo interino que
deverá ser efetivo a partir da próxima terça ou quarta-feira é que sua força se
origina no Congresso. Ele é fruto do Legislativo - e não das urnas - e abraçado
com ele governará, numa espécie de parlamentarização do presidencialismo
brasileiro.
É uma situação que certamente trará de volta propostas de
reforma do exaurido sistema político, como a implantação do parlamentarismo de
fato e de direito. Não seria má ideia, desde que não venha sob a forma de
remendo improvisado, ou mais uma solução Frankenstein que vai criar um bicho
com cabeça de presidencialismo e corpo de parlamentarismo, ou vice-versa – um
convite a novas crises políticas e institucionais.
A única solução razoável para o nosso sistema político seria
uma reforma profunda, começando pela base de tudo, que é o direito do cidadão
de se sentir representado de verdade pelo sujeito que elegeu. Isso deveria
valer em qualquer eleição, mas sobretudo nas regras para escolha de deputados e
senadores – aqueles que podem cassar o presidente da República. Enquanto
existir um sistema em que o eleitor vota em um nome e elege outro para a
Câmara, ou instala no Senado suplentes que nunca viu mais gordos, persistirá o
fosso entre representantes e representados, que está na origem da corrupção e
das distorções que, com presidencialismo ou parlamentarismo, vão continuar a
existir.
Helena Chagas é jornalista, formada na Universidade de
Brasília em 1982. De lá para cá, trabalhou como repórter, colunista,
comentarista, coordenadora, chefe de redação ou diretora de sucursal em
diversos veículos, como O Globo, Estado de S.Paulo, SBT e TV Brasil (EBC). Foi
ministra chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência da República de
janeiro de 2011 a janeiro de 2014.
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