Demétrio Magnoli, O Globo
“Não celebramos, hoje, uma vitória política. Esta solenidade
não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas festa da
conciliação nacional, em torno de um programa político amplo, destinado a abrir
novo e fecundo tempo ao nosso país.” Três décadas atrás, em março de 1985,
estas frases, escritas pelo presidente Tancredo Neves para seu discurso de
posse, foram lidas pelo vice José Sarney, que subia a rampa do Planalto e
proclamava o ano zero da “Nova República”.
Michel Temer, o sapo transformado em príncipe, logo as
ecoará, com alguma variação retórica, marcando a conclusão do impeachment de
Dilma Rousseff. Como quem sacode o paletó, expurgando-o de impurezas, o
presidente se libertará do rótulo de “interino” invocando a “conciliação
nacional” e anunciado a aurora de um “novo tempo”. A história se repetirá, mas
como farsa. De fato, isso é um epílogo, não uma introdução.
O Brasil já teve uma República Nova, proclamada por Getúlio
Vargas em 1930, e uma República Velha, o nome pouco lisonjeiro com o qual os
vencedores da Revolução de 1930 batizaram o período republicano inicial,
inaugurado em 1889. Naquela estranha transição de 1985, pela voz inesperada de
Sarney, antigo líder da Arena, o partido de sustentação do regime militar,
Tancredo inventou a “Nova República”. A expressão evocava a ideia ilusória de
uma ruptura radical.
Na prática, a nítida cisão consumou-se mais tarde, pela
Constituição de 1988. Hoje, a ascensão de Temer, o terceiro vice afortunado
numa linhagem que abrange Itamar Franco, não assinala um novo começo, mas um
desfalecimento. A “Nova República” morre junto com o fim do ciclo de poder
lulopetista. A “Constituição Cidadã” de Ulysses Guimarães inaugurou uma época
de ampliação dos direitos sociais, demarcando o terreno para a expansão das
despesas públicas da União, dos estados e dos municípios.
Aquele contrato constitucional tornou-se elemento central na
estabilidade da “Nova República”. A elite política civil legitimava-se pelo
compromisso de reduzir a pobreza e as desigualdades, por meio da ação estatal.
Na sua dimensão econômica, o colapso da “Nova República” reflete o esgotamento
da capacidade do Estado de continuar a promover a elevação dos gastos públicos
em ritmo superior ao do crescimento do PIB. A encruzilhada emerge pela terceira
vez.
No governo Sarney (1985-1990), a expansão das despesas
públicas foi financiada pela emissão monetária, gerando uma crise de
hiperinflação que consumiu o governo Collor (1990-1992) e só foi resolvida pelo
Plano Real, em 1994. Na “era FHC” (1995-2002), sem o recurso à emissão
monetária, o governo apelou ao aumento da carga tributária, até ceder ao
imperativo do realismo e brecar a marcha dos gastos públicos. A vertiginosa
queda de popularidade resultante propeliu a quarta candidatura presidencial de
Lula, alçando o PT ao poder.
Na “era lulopetista” (2003-2016), surfando a onda da
“globalização chinesa”, o governo acelerou os motores do gasto público. A
expansão dos programas sociais, os subsídios ao consumo e os generosos
financiamentos ao empresariado soldaram um extenso arco de poder, gerando
triunfos eleitorais sucessivos. Contudo, sob Dilma, enfrentando a reversão do
ciclo internacional, o governo insurgiu-se contra as limitações impostas pela
realidade, financiando seus gastos por meio da elevação do déficit e da dívida.
Do voluntarismo dilmista seguiu-se o “estelionato eleitoral”
de 2014, uma depressão histórica e, no final, o impeachment. O colapso da “Nova
República” deriva da impossibilidade de continuar a financiar despesas públicas
crescentes sem reacender a fogueira inflacionária ou recorrer a um aumento
brutal da já exagerada carga tributária. À encruzilhada econômica, soma-se um
impasse político-institucional.
O sistema de regulação política fundado em 1988 degenerou no
“presidencialismo de coalizão”, uma expressão cínica sob a qual se ocultam os
intercâmbios criminosos entre o Executivo e o Congresso que asseguram a
governabilidade. Sob a égide de Lula, os mecanismos da corrupção sistêmica
atingiram um ápice, propiciado pelas complexas teias de negócios do capitalismo
de estado. As Jornadas de Junho de 2013 e, depois, as manifestações de rua do
impeachment evidenciaram a desmoralização generalizada da elite política.
A Operação Lava-Jato descerrou o véu que cobria a captura da
administração pública e das estatais pelas máfias políticas. Descosturou-se o
tecido do contrato de legitimidade da “Nova República”. O sistema
político-partidário da “Nova República” evoluiu rumo a uma geometria
triangular, baseada tanto na polaridade PSDB-PT quanto na oscilação pendular do
PMDB. Sob as coalizões lideradas pelo PSDB e pelo PT, o equilíbrio político
durou duas décadas, até a crise aberta em 2013, que destruiu as engrenagens do
sistema.
A agonia do lulopetismo não significará nem a morte do PT
nem uma simples troca de guarda no Planalto. Corroído pelas disputas internas
entre seus três caciques provincianos e ameaçado pela dela ção da Odebrecht, o
PSDB não tem candidatos presidenciais viáveis. Já o PMDB, eterno partido
governista, carece de lideranças nacionais com densidade eleitoral e aparece
como alvo destacado da Lava-Jato. Há, na renúncia antecipada de Temer à
candidatura presidencial em 2018, bem mais que uma vulgar manobra tática.
Na Itália, a Operação Mãos Limpas, destruiu a Democracia
Cristã e o Partido Socialista. No Brasil, o que sobrará intacto até as eleições
de 2018? A “Nova República” apaga-se na bruma do passado — mas nenhum sistema
político alternativo surgiu para substituí-la. Temer não é Tancredo e não tem o
direito de proclamar um “novo e fecundo tempo”. O terceiro vice afortunado é um
gerente de ruínas. Quando, finalmente, Ricardo Lewandowski declarar o
impeachment de Dilma, sugiro apenas um brinde discreto.
Demétrio Magnoli é sociólogo
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