Artigo de Fernando Gabeira
A denúncia contra Lula em Curitiba desfechou um psicodrama
nacional. Eu a vejo como parte de um drama inconcluso. De qualquer forma, os
dois primeiros atos trazem boas indicações para prever o futuro.
Quando Lula foi levado numa condução coercitiva, abriu-se um
grande debate não só sobre a escolha da Lava Jato, mas sobre a própria
legalidade do procedimento. Entretanto, no âmbito da mesma Lava Jato, mais de
uma centena de pessoas foram conduzidas no momento em que os investigadores
escolheram. Não houve nenhum protesto de monta ao longo de todas essas
operações.
A vantagem de um processo que envolve políticos de peso é
que, de certa forma, põe à prova o próprio Estado de Direito. Tudo o que é
feito é escrutinado e criticado sem piedade pelas forças atingidas.
Foi assim também com um instrumento mais importante: a
delação premiada. Dilma chegou a comparar os delatores da Lava Jato com Joaquim
Silvério dos Reis. Como se a Lava Jato fosse a opressão portuguesa e os
assaltantes da Petrobras, os heróis da Inconfidência Mineira.
Sempre que nossa cabeça está a prêmio nos lembramos de
Tiradentes. Lula também o fez, no pronunciamento após a denúncia dos
procuradores. Não é preciso ser um luminar em História do Brasil para perceber
que são situações essencialmente distintas, a Inconfidência Mineira e o
petrolão.
O segundo ato do drama foi a apresentação da denúncia.
Choveram críticas aos procuradores. Dessa vez, não só dos petistas, mas também
de adversários de Lula que consideraram a denúncia um excesso.
De fato nunca houve no Brasil uma denúncia com
características tão políticas. Mas tratava-se de uma organização que dirigiu o
País por 13 anos. A denúncia situava-se no contexto do petrolão, um escândalo
que revelou as entranhas do sistema de financiamento político no Brasil.
Reclamou-se do tom e da politização e daí se chegou à
conclusão de que a denúncia seria inepta. Considerando que Sergio Moro não se
iria basear nem na entrevista nem no power point, o conceito de inépcia da
denúncia dependia, necessariamente, da leitura atenta de suas 150 páginas. E
isso certamente ele o faria. Se a denúncia fosse inepta, ele a rejeitaria; se
não, iria aceitá-la.
E foi o que Moro fez: aceitou a denúncia. Não está isento de
crítica. Mas para demonstrar o contrário, que a denúncia deva ser rejeitada, é
preciso percorrer com ele as 150 páginas.
Os dois pontos básicos da denúncia, o triplex e o
armazenamento dos presentes presidenciais, foram mostrados com bastantes
detalhes, documentos e fotografias. A crítica mais contundente não se prendeu
ao objeto da denúncia, mas à sua formulação, em que apresenta Lula como o
comandante máximo, o general, o topo da pirâmide.
Isso não foi amplamente demonstrado e a lacuna ficou mais
profunda com a sucessão de epítetos. Essa é, no entanto, a apreensão geral do
Ministério Público, avaliando o conjunto dos processos, incluídos os de
obstrução da Justiça. O próprio Janot já fez um pronunciamento público
afirmando que Lula quer tumultuar o processo.
Lula ignorou os documentos apresentados pelos procuradores e
se fixou na questão política. Apresentou-se não mais como uma jararaca, e isso
é essencial para quem quer disputar a Presidência. Os companheiros já o
salvaram nos momentos difíceis. Falcão lembrou de um senador não citado no arco
de forças que foi contra o impeachment. Lula disse que as mulheres falavam até
de madrugada no WhatsApp. Uma voz feminina o salvou do fundo da sala; os
homens, também.
Mas nos momentos em que está, de fato, emocionado, ninguém
consegue salvá-lo. Num deles, comparou-se a Jesus Cristo. Não chegou à audácia
dos Beatles. Ele estava abaixo de Jesus Cristo, mas acima de todos nós.
Em seguida disse aquele frase sobre os políticos: ninguém é
mais honesto do que o político porque em todas as eleições precisa ir às ruas
pedir votos. Nessa versão tosca de defesa nos garante que nenhum profissional
tem profissão mais honesta que Paulo Maluf, sempre chamado de ladrão, sempre se
reelegendo. Os votos absolvem, não os juízes.
A história de chamar os funcionários públicos de analfabetos
e sugerir que sua profissão não é tão honesta é um absurdo que deveria levar os
defensores a uma reflexão sobre seu líder.
Afinal você não anuncia que está na luta pela Presidência e
ofende num só parágrafo todo o funcionalismo público. Ou, então, você não é bom
candidato.
Significa apenas que os artifícios e a mística que
sustentaram uma fase de sua vida perderam todo o vigor.
Lula não era um candidato a presidente, mas alguém bastante
abalado na própria autoestima, lembrando, nostalgicamente, uma reunião com os
líderes mundiais e acentuando que Fernando Henrique adoraria estar ali.
Tudo o que reteve de uma importante reunião global foi uma
vitória sobre o Fernando Henrique, como esse vasto mundo estivesse dividido
entre PT e PSDB.
Vi na televisão alguém comparar os procuradores ao movimento
dos tenentes, o tenentismo. De fato está presente nos dois grupos o mesmo
impulso moralizador da política brasileira. Mas os métodos são outros, o que
valeu aos tenentes prisão e exílio.
Os procuradores e todos os que participam da Lava Jato
trabalham sob o império da lei, são controlados por instâncias superiores e
também por uma forte cultura jurídica, que, de repente, brotou na imprensa
brasileira. É um processo saudável, uma discussão necessária. Seria mais
bem-sucedida ainda se buscasse alguma maneira de levar esses cuidados a todos
os brasileiros às voltas com a Justiça.
O drama ainda não chegou ao terceiro ato: o julgamento. Aos
vários julgamentos que envolvem o período. Nele versões e evidências se
chocaram sem parar. Hora de conhecer os vencedores.
Artigo publicado no Estadão em 23/09/2016
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