Artigo de Fernando Henrique Cardoso, O Estado de S.Paulo
Viramos uma triste página. Melhor teria sido que o governo
Dilma Rousseff tivesse competência política e administrativa para chegar ao
final. O que sobrou? Ilusões perdidas de quem acreditou no modo PT de governar,
economia em recessão, desemprego em massa, escândalos, uma onda de desencanto.
Será a ex-presidente a única responsável? Não. Mas ela foi incapaz de manter as
rédeas do governo e deixou evaporar as condições de governabilidade. Juntou-se
a isso o crime de responsabilidade.
Uma pessoa eleita por 54 milhões de votos é derrubada, sendo
inocente, como repisou a defesa petista? Houve um “golpe congressual” pela
perda da maioria, como nos sistemas parlamentaristas? Tampouco. Em sua emotiva,
mas racional argumentação, a doutora Janaina Paschoal sumarizou com pertinência
o desrespeito às normas constitucionais.
O impeachment requer fundamento jurídico (um desrespeito
continuado à Constituição), mas é também um processo político (a falta de
sustentação congressual e popular) e não tem necessariamente consequências
capituladas no Código Penal. Foi jogando com este último aspecto que a
presidente Dilma apelou retoricamente para sua “inocência” (não roubei, não
tenho conta no exterior, etc.).
Diga-se em sua homenagem que, na parte lida do discurso
perante o Senado e em boa parte da arguição, ela se mostrou “uma guerreira”. Se
a guerrilheira do passado não era tão democrática como afirma, isso não apaga a
nobreza de sua resistência ao arbítrio e à tortura. Tampouco, entretanto, sua
combatividade justifica as “pedaladas fiscais”, os gastos não autorizados pelo
Congresso, as centenas de bilhões de reais destinados à maciça transferência de
renda em benefício de empresas nacionais e estrangeiras, via BNDES e subsídios
fiscais, para não mencionar o fato de que presidia o conselho de administração
da Petrobras quando a empresa era assaltada em benefício de seu partido e da
“base aliada”.
A presidente Dilma Roussef pagou com o impeachment o preço
de sua teimosia e da visão voluntarista que se consubstanciou na “nova matriz
econômica”. E pagou também pela má companhia. Se a presidente não foi autora
dos malfeitos, foi beneficiária política deles.
Foram tantos os implicados nesta rede que, aos olhos do
povo, ficou condenada toda a “classe política”. A ruína do governo petista
provoca o desabamento do atual sistema político. Os erros vêm desde quando os
partidos social democratas (grosso modo, PSDB, PT, PSB e PPS) foram incapazes
de inibir suas idiossincrasias e de conviver, divergindo quando fosse o caso.
O PT, herdeiro da visão de um mundo dividido em classes e
organizado em torno do eixo direita-esquerda, encarou os
liberais-conservadores, especialmente o PFL, como se fossem uma direita
reacionária. Ao PSDB quis pintar como um partido da elite conservadora.
A fatal decisão do primeiro governo Lula de se aliar aos
“pequenos partidos” e não ao PMDB — que representava o “centro” — e transformar
o PSDB em “partido inimigo”, deu origem ao mensalão, que posteriormente
encontrou réplica mais ampla no petrolão.
O PT de Lula abriu assim espaço para o oportunismo, o
corporativismo, dos vários “centrões”. O atual amálgama dos ultraconservadores
em matéria comportamental com os oportunistas, clientelistas etc., forma o que
eu denomino de “o atraso”. Meu governo e o de Lula, no início, ainda foram
capazes de dar rumo ao país, o que forçou o atraso a jogar como coadjuvante.
Mais recentemente, entretanto, houve uma inversão: o atraso
passou a comandar as ações políticas, tendo Eduardo Cunha como figura
exponencial. O mal estar na sociedade, somado às informações sobre desmandos e
corrupções que circulam em uma sociedade livre e o desenvolvimento de
instituições estatais de controle externo, colocou em xeque o arranjo político
institucional: o povo e as instituições reagiram e abriram espaço para a
mudança de práticas.
Estamos assistindo, e não só no Brasil, aos efeitos das
grandes transformações econômicas e tecnológicas. Sociedades estruturalmente
fragmentadas por uma nova divisão do trabalho, culturalmente heterogêneas, com
muitas dificuldades para manter a coesão social, com ampliação gigantesca da
acumulação de capitais e interrogações sobre como oferecer empregos e reduzir a
desigualdade.
Nesse tipo de sociedade as distinções de classe se mesclam
com outras formas de identificação social. Nelas, paradoxalmente, os partidos
perdem espaço e as narrativas capazes de juntar massas dispersas suprem o vazio
criado na trama política.
Por isso, o slogan: “É golpe”. O resto, as ligações efetivas
dos petistas com interesses vários, os resultados de suas políticas e a
identificação dos grupos que delas se beneficiaram, fica obscurecido pela força
eventual da narrativa.
O desafio das lideranças renovadoras será o de criar, mais
do que uma “narrativa”, propostas que desenhem caminhos para a nação. Teremos
capacidade, coragem e iniciativa para rever posturas, caminhos e alianças?
Terá o PT disposição para uma verdadeira reconstrução e para
o diálogo não hegemônico? E os demais partidos, inclusive e principalmente o
PSDB, serão capazes de aglutinar a maioria, apesar de inevitáveis divergências?
O que vimos nas semanas passadas foi o rufar de tambores
para a construção de um discurso: uma presidente inocente sendo destronada por
golpistas ansiosos pelo poder. Mau começo para quem precisa se reinventar. A
despeito disso, temos desafios comuns.
Ou bem seremos capazes de reinventar o rumo da política, ou
novamente a insatisfação popular se manifestará nas ruas, sabe-se lá contra
quem e a favor do quê. E não basta circus, belas palavras, também é preciso
oferecer panis, um rumo concreto para o país e sua gente.


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