Artigo de Fernando Gabeira
Pensei em escrever sobre a prisão de Eduardo Cunha. Mas já
falei dela e a considerava uma consequência da perda de seu mandato. Era tão
amadurecido na minha cabeça que ao ser informado de que Cunha foi preso, corri
o risco de perguntar: de novo?
O Rio é uma cidade surpreendente. Na Olimpíada, lançou a
mensagem universal de diversidade e tolerância. Nas urnas levou dois candidatos
ao segundo turno cujas campanhas são sacudidas pelos fantasmas do obscurantismo
político e religioso. Esses fantasmas reaparecem na forma de um livro de
Crivella e uma declaração de uma corrente do PSOL afirmando que Shimon Peres é
um genocida que ganhou o Prêmio Nobel da Paz.
Ambos, Crivella e PSOL, navegam num contexto em que esses
fantasmas já surgiram. Um pastor evangélico no passado chutou a imagem de uma
santa católica. Um dirigente do PSOL, também no passado, queimou uma bandeira
de Israel em praça pública. Outro dia, estava lendo uma história da expressão
tolerância, de Wendy Brown, e ele aponta que a gênese histórica da tolerância
não dependeu apenas do liberalismo, mas também do fim de sangrentas guerras
pela separação entre Igreja e Estado, cavando com isso um espaço maior para o
indivíduo.
Embora escrito há duas décadas, o texto de Crivella contém
uma semente de intolerância religiosa, um maniqueísmo básico. Sua maior
expressão, no texto divulgado pela imprensa, é a ideia de Crivella: “bacilos,
germes e bactérias não foram criados por deus mas são a tradução microscópica
do diabo”. A partir daí, é compreensível que segregue religiões orientadas por
deus ou pelo diabo, práticas sexuais legítimas ou pecaminosas. Nesse último
ponto, a vida sexual, as religiões são parecidas. Mas, de certa forma, tentam,
ainda que timidamente, distinguir os mandamentos que valem para os fiéis e os
que valem para os sacerdotes. O modo de fazer amor dos missionários é
classicamente conhecido. Tão conhecido que o tradicional papai-mamãe é
inscrito, nas incontáveis modalidades de sexo, como a posição do missionário.
O próprio budismo, entre dez preceitos, obriga os monges a
seguir todos, mas aceita que os leigos observem apenas os cinco primeiros.
Mesmo no budismo, a questão do sexo parece ter grande importância, pois o
segundo preceito — não cometer atos impudicos — também apresenta restrições.
Enfim, a visão restritiva do sexo não é exclusiva de uma religião. O problema é
entender nisso uma luta entre deus e o diabo, mover cruzadas para universalizar
a posição do missionário. Isso ajuda a demonizar comportamentos sexuais e,
certamente, ajuda a demonizar visões e cultos religiosos diversos do
evangélico, como a religião católica ou a africana.
No outro lado do ringue, o ataque a Shimon Peres no site do
PSOL vai num sentido contrário à posição brasileira de apoio aos esforços de
paz no Oriente Médio. Assim como a suspeita de obscurantismo religioso é
razoável no contexto de Crivella, a de obscurantismo político também é razoável
no da extrema esquerda. Queimar a bandeira de Israel é posicionar-se,
simbolicamente, pela destruição do estado judeu. A posição tradicional
brasileira é lutar pela paz e coexistência amistosa de judeus e palestinos. O
germe da intolerância aparece também nas posições do PSOL sobre a resistência
venezuelana ao populismo devastador dos chavistas, à luta dos cubanos pela liberdade.
Enfim, toda a festa de abertura da Olimpíada parece ter acontecido num Rio
distante, numa cidade imaginária. No entanto, o Rio da tolerância política e
religiosa existe de fato, e não só terá dificuldades para escolher, como também
para monitorar o vitorioso, mantê-lo distante dos fantasmas que habitam suas
moradas políticas e religiosas.
Nada de pessoal. São forças com que convivi no espaço
público. Crivella é uma pessoa gentil. Poderia conversar com ele sobre a
partícula de deus, bóson de Higgs, uma partícula subatômica que ganhou esse
nome porque está em toda parte. Mesmo entre os germes, bacilose e bactérias do
diabo. E com Babá, com quem convivi na Câmara, poderia conversar sobre o
carimbó paraense e toda a riqueza e diversidade da música de seu estado natal.
O problema não são as pessoas, mas sim algumas de suas ideias, no momento em
que se preparam para dirigir uma complexa metrópole com apelo global.
É tarde para choradeira. Uma das duas forças sairá
vencedora. Só resta estar por aqui, lembrando que o muro de Berlim já caiu e
que mistura de religião com política ficou no passado, embora se manifeste hoje
no Exército Islâmico e em outros grupos terroristas. Lembrar que o populismo
agoniza no continente. São tantas as promessas eleitorais, tão grave a crise
econômica, que acredito que a primeira tarefa será ajustar discurso e
realidade.
No mais, vamos para a dura batalha do cotidiano urbano, esse
espaço onde residem os deuses e os diabos das pequenas coisas.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 23/010/2016
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