domingo, 30 de outubro de 2016

SE ENTREGA, CORISCO

Artigo de Fernando Gabeira
Renan Calheiros, no passado, perdia cabelos mas não perdia a cabeça. Agora, ele ganhou cabelos mas perde a cabeça, com frequência. Recentemente, disse que o Senado parecia um hospício e afirmou que ajudou a senadora Gleisi Hoffman no seu embate com a Lava-Jato. Hoje, sabemos que ordenou varreduras em vários pontos estratégicos ligados aos senadores investigados pela roubalheira na Petrobras.
E Renan perdeu a cabeça de novo, chamando um juiz federal de juizeco e o ministro da Justiça de chefete de polícia. Sua polícia legislativa funciona como uma espécie de jagunços de terno escuro e gravata, a serviço de alguns coronéis instalados no Senado. Quando combatemos Renan e o obrigamos a deixar o cargo de presidente, os jagunços já estavam lá. Como o Brasil vivia num estado meio letárgico, tivemos de enfrentar a braço os jagunços de Renan para garantir a transparência de uma reunião sobre seu destino.
O sono brasileiro não é mais tão profundo como na época. Ainda assim, Renan sequer foi julgado pelos crimes de que era acusado na época. São as doçuras do foro privilegiado. Agora, ele quer que o foro privilegiado, que já era uma excrescência para deputados e senadores, estenda-se também aos seus jagunços. E que o espaço do Senado seja um santuário para qualquer quadrilha que tenha, pelo menos, um parlamentar como membro.
Talvez Renan esteja desesperado. Mas essa hipótese ainda precisa ser confirmada. Há sempre alguém que se acha o verdadeiro guardião das leis e se dispõe a defender Renan e o Senado, independentemente desse contexto bárbaro que presenciamos há anos. O próprio Gilmar Mendes, cujas posições são respeitáveis, saiu em defesa de Renan, sugerindo que a polícia não deveria entrar ali. Mas o que fazer quando a própria polícia do Senado comete uma delinquência? A resposta das pessoas que não foram atingidas pela Lava-Jato, mas se incomodam com o sucesso da operação, é sempre esta: falem com o Supremo. No caso do Renan, sob investigação em 12 processos diferentes, e sempre na presidência do Senado, o que significa falar com o Supremo?
Estamos falando com o Supremo há anos. Ele manda grampear senadores adversários, como fez com Marconi Perillo, orienta a agressividade e a truculência de seus jagunços contra deputados. Até hoje, para ele, o Supremo é apenas o cemitério de seus processos.
Renan, Gilmar Mendes e todos os defensores desse absurdo não conseguem me convencer que é preciso pedir licença ao Supremo para punir jagunços que usam equipamentos do Estado, diárias pagas pelo governo, para fazer varreduras na campanha de Lobão Filho, no Maranhão. Varreduras inclusive sob supervisão do genro de Lobão Filho, um homem chamado Marcos Regadas Filho, acusado de sequestro e mencionado no assassinato do blogueiro Décio Sá.
A diversão desse personagem para qual os jagunços trabalharam é usar o helicóptero para dar voos rasantes no Rio Preguiça em Barreirinhas, aterrorizando banhistas e pescadores.
— Foge, meu preto, que isso é vendaval — ouvia-se o grito dos pescadores
O halo protetor do Supremo não se limita aos bandidos do Congresso, mas aos seus jagunços e cúmplices regionais. A Lava-Jato não é infalível. Está sujeita a críticas como todas as atividades de governo. Não se deve usar o êxito da Lava-Jato com intenções corporativas, inclusive num momento de crise econômica como a nossa. Até aí, tudo bem. Mas negar à PF o direito de entrar no Senado quando o crime está sendo cometido pela própria polícia parlamentar, isso me parece um absurdo. O foro privilegiado tem sido uma espécie de escudo para os bandidos eleitos. Se o espaço onde atuam torna-se também um santuário para todos os que trabalham lá, teremos não só a impunidade de indivíduos mas a liberação de espaços especiais para o crime.
Nas campanhas que fiz contra Renan, desenhamos um cartaz dizendo: “se entrega, Corisco”. Isso foi há muito tempo. Seus crimes não foram punidos na época. Ainda me lembro das imagens das boiadas se deslocando no sertão para fingir Renan que era um grande criador. Os crimes não apenas deixaram de ser punidos. Aumentaram exponencialmente ao longo dos anos, ancorando-se inclusive na pilhagem da Petrobras.
Eduardo Cunha foi preso. Não tinha mais mandato. Se Renan continuar solto, é apenas porque tem um. É justo cometer crimes em série, sob o escudo de um mandato parlamentar? Renan está nervoso porque percebe o crepúsculo de um sistema de impunidade tecido pela audácia dos coronéis e a inoperância do Supremo. A evolução do país o levou a perder a cabeça, algo raro no passado. Espero que não chegue a arrancar os cabelos e ouça o meu conselho de anos atrás: se entrega, Corisco.
Artigo publicado em 30/10/2016 no Segundo Caderno do Globo
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