domingo, 27 de novembro de 2016

A DITADURA DA AGENDA

“Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade.” A frase de George Orwell parece não envelhecer nunca e deveria se tornar um mantra para os jornalistas culturais brasileiros. A escravidão da agenda cultural tomou conta de todos os grandes veículos de imprensa. Basta fazer uma ronda para se constatar não só matérias culturais muito semelhantes, como quase todas pautadas por algum press-release recebido das centenas de assessorias de imprensa existentes.
Tome-se como exemplo um jornal, uma revista e um grande portal visitados no mesmo dia. Na Folha, por exemplo, o destaque é um filme da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, seguido por uma resenha sobre uma peça inspirada em Tchékhov, duas críticas de outros filmes da Mostra, a coluna social e algumas notas de agenda. Nenhuma reportagem. Na Veja, três páginas para a nova temporada de Black Mirror, uma crítica para Nada Será como Antes (TV Globo), uma crítica para o novo filme de Ben Affleck e outro hollywoodiano de menor peso e a biografia de Rogéria. Nenhuma reportagem. No G1, os destaques eram os ingressos à venda do Rock in Rio, o novo membro da Academia Brasileira de Letras, a nova séria da Disney e o novo show do The Kooks. Nenhuma reportagem.
Lembro-me do colega Fabio Cypriano me dizer como foi criticado pela curadoria da 28ª Bienal de São Paulo por ter focado sua cobertura nos bastidores do evento, que à época eram mais notícia do que as obras. “O trabalho da Folha não foi por desmerecer o trabalho da curadoria, mas para exercer jornalismo. Se funcionários e artista não são pagos, isso é um fato jornalístico. A Fundação Bienal de São Paulo é uma instituição pública e muitos dos escândalos que envolveram são só conhecidos porque o jornalismo foi de fato exercido”, disse-me Cypriano.
A tecnologia atual oferece uma facilidade imensa de acesso a obras de arte do mundo inteiro, trechos de filmes do outro lado do planeta, histórico teatral do dramaturgo em cartaz ou todas as músicas do cantor que agora lança o novo disco. No entanto, uma parte dos novos jornalistas culturais acha que isso é o suficiente para exercer jornalismo cultural, acomodando-se dentro da redação, debaixo do ar condicionado, à mercê das centenas de sugestões de pautas recebidas por e-mail.
Coberturas fora da agenda das assessorias
Que fundamental seria lermos semanalmente assuntos que “alguém não quer que se publique”. Uma reportagem de fôlego sobre a produção de filmes e séries brasileiras para o Netflix e seu necessário processo de regulamentação, como ocorreu com a TV paga. Uma reportagem sobre a situação das casas de teatro fora das capitais e seus meios de subsistência. Uma reportagem sobre os novos artistas plásticos brasileiros e as estratégias dos marchands para internacionalizá-los. Uma reportagem sobre a necessidade de agenda cheia de shows após o fim da era dos CD’s. Uma reportagem sobre quanto se paga para seu livro ter o espaço nobre de uma livraria de shopping center. Enfim, apenas alguns exemplos de assuntos que fogem da agenda, que certamente incomodariam alguns agentes culturais ou assessorias, mas que, certamente, seriam um serviço jornalístico de maior qualidade para o leitor, sem falar na reflexão cultural que os mesmos proporcionam.
O problema é que reportagem custa caro. Exige carro, viagens (que não sejam jabás), tempo de execução etc. E com a crise financeira do jornalismo tradicional e a pressa de leitura do jornalismo online, fica mais cômodo ficar na agenda cultural recebida no conforto do e-mail. Pois ele também é serviço, e pode ser feito dignamente, mas que não seja a totalidade do jornalismo cultural disponível.
É preciso, portanto, termos leitores culturais mais exigentes. Por que os leitores esperam uma investigação jornalística de peso sobre o novo alvo da Lava Jato, ou detalhes aprofundados sobre o novo pacote de estímulos econômicos e se contenta com tão pouco quando o assunto é jornalismo cultural? Não percebem que estão consumindo jornalismo político, jornalismo econômico, mas, em vez de jornalismo cultural, consomem publicidade em forma de jornalismo de serviço?
Subir o nível das reflexões culturais nas páginas de jornais e revistas, bem como nos grandes portais, é tirar a cultura do mero utensílio de consumo para um agente intelectual transformador do dia a dia, elevando também, pouco a pouco, nossas exigências de consumo de arte e entretenimento. É preciso publicar o que não querem que publiquemos.
Franthiesco Ballerini é jornalista, autor dos livros ‘Diário de Bollywood’, ‘Cinema Brasileiro no Século 21’ e ‘Jornalismo Cultural no Século 21’.
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