Artigo de Fernando Gabeira
Gostaria de ter ido a Salvador para conhecer e mostrar a
Igreja de Santo Antônio da Barra, o Forte de São Diogo e o Cemitério dos
Ingleses. Na igreja, você assiste à missa e contempla a Baía de Todos os
Santos. O Forte de São Diogo foi erguido para defender o flanco sul da cidade,
no tempo em que Salvador era a capital do Brasil.
Só que os inimigos não chegaram pelo mar. Vieram de dentro
de Salvador, capitaneados por Geddel Vieira Lima. Construiriam um prédio de 30
andares, que, segundo o Iphan, arquitetos e moradores, arruinaria a paisagem.
Felizmente, a paisagem foi salva. Geddel tentou pressionar o
ministro da Cultura, mas acabou perdendo a batalha. Quase continuou no cargo. O
governo Temer é feito de cumplicidades pretéritas com o objetivo de escapar da
Lava-Jato. Ao tentar manter Geddel no cargo, Temer queria impedir que ele caísse
nas mãos de Sérgio Moro. Ele é investigado pela Lava-Jato. O apartamento de
Geddel no prédio La Vue custou R$ 2,5 milhões. Ou comprou ou ganhou. Em ambas
as hipóteses, aumentaria a suspeição da Lava-Jato.
Lembro-me de Geddel ainda na década dos 1990. Antônio Carlos
Magalhães divulgou um dossiê intitulado “Geddel vai às compras”. Os líderes
políticos que, inutilmente, lhe deram apoio para evitar sua queda são uma
espécie de Bessias, aquele mensageiro cuja missão era evitar que Lula caísse
nas mãos de Moro. Não adiantaria muito tentar salvar Geddel, esconder-se nas
barras das togas dos ministros do Supremo. A grande delação da Odebrecht vai
colocar todo o mundo político na roda.
Existem fortes manobras para decretar uma autoanistia. Essas
manobras são conduzidas por Renan Calheiros e Rodrigo Maia, mas têm o apoio de
Temer. Eles acreditam que podem deter a Operação Lava-Jato através de um golpe
parlamentar. Na verdade, podem aumentar a irritação popular com eles e
transformar a delação da Odebrecht num genocídio da espécie.
Temer e a cúpula do PMDB, embora estejam trabalhando para
estabilizar a economia, confirmam as piores suspeitas. Seu grande objetivo é
desmontar a Lava-Jato. Considerei o impeachment um momento importante para
atenuar a crise brasileira. Achei que era preciso dar um crédito inicial de
confiança para que o desastre econômico fosse reparado. Pouco se avançou nesse
campo. Mas eles andam rápido no projeto de autoblindagem.
O que não faz o medo? Se Temer, Moreira, Geddel e Padilha, o
quarteto do Palácio, partem para essa luta com Renan Calheiros e Rodrigo Maia,
o jovem ancião da política brasileira, eles abrem uma nova frente. Quais são
seus motivos? Geddel, por exemplo, já aparece em algumas delações premiadas.
Seu enriquecimento é visível. Moreira Franco, também citado cobrando propinas
em obras de aeroporto, e Padilha, como Geddel, são velhos sobreviventes. ACM o
chamava de Eliseu Quadrilha. O próprio Temer tem dois apelidos na delação da
Odebrecht.
No momento em que abrem o jogo, não deixam outro caminho a
não ser o de uma oposição implacável. Contam com um grande número de deputados
e senadores, mas esses estão apenas cavando mais profundamente sua sepultura.
Comandados por Renan Calheiros e o quarteto do Palácio, os políticos
brasileiros temem encarar a sua batalha decisiva. Ou liberam a corrupção que
sempre os alimentou ou vão para o inferno.
Na biografia de Renato Russo, há menções a Geddel Vieira
Lima, que frequentava a mesma escola do cantor. Geddel chegava sempre num carro
verde e dizia que seu sonho era ser político. Renato Russo o achava
insuportável. O que diria hoje diante da bela paisagem que Geddel ameaçava em
Salvador?
Não pude ir à Bahia porque a crise no Rio me levou aos
presídios de Bangu. Agora que um ex-governador está lá dentro, vale a pena
conhecer o que é aquilo. Passei uma noite em claro para documentar o esforço
das famílias em visitar os presos. Existe uma visão geral de que as famílias
também são culpadas e devem pagar um pouco pelos crimes de seus filhos, pais e
maridos. É um equivoco. Com a prisão de Cabral, o sistema penitenciário tem
dois caminhos: ou cria um regime de exceção para ele e sua família ou
racionaliza a visita de todos os 26 mil presos no complexo. Parece mais fácil
criar um regime de exceção. Mas com um bom aplicativo, o que leva horas de
espera, pegar uma senha, poderia ser feito pelo telefone. Pelo menos, os
problemas com Cabral em Bangu são mais fáceis de equacionar do que os da cúpula
do PMDB.
Presos, ainda dão trabalho. Muito menos, no entanto, do que
a Renan Calheiros e ao núcleo do Planalto, que mantêm o poder em Brasilia e
trabalham, intensamente, numa blindagem de aço especial que consiga,
simultaneamente, anular a Lava-Jato com suas evidências e a opinião pública com
sua justificada fúria.
Que país é esse? Renato Russo dizia na letra da canção: “na
morte eu descanso/ mas o sangue anda solto/ manchando papéis e documentos
fiéis”. Como Cabral, Geddel foi às compras. Roubar uma paisagem de nada
adianta, porque, na cadeia, o que se vê é o sol nascer quadrado.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 27/11/2016
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