Foro privilegiado, ou foro por prerrogativa de função?
Cláusula de barreira ou cláusula de performance? As palavras, principalmente em
política, costumam expressar posições bem definidas.
O que chamamos foro privilegiado nem sempre foi visto assim.
No passado era pior. As pessoas tinham direitos a partir de sua origem, de sua
classe social, algo que as acompanhava até à morte. Nesse sentido, ao limitar o
foro especial ao exercício de uma função, houve um avanço indiscutível. Perdido
o cargo, retorna-se ao destino comum.
Deputados e senadores só podem ser processados pelo Supremo
Tribunal. Em princípio, não é uma coisa boa se você fez algo errado. Os juízes
do Supremo são mais competentes e, portanto, mais capazes de desarmar todas as
tramas da defesa. Além disso, ao ser condenado pelo Supremo, não há para onde
correr, não há chances de recursos a uma instância superior, como na vida aqui
embaixo, onde os condenados se veem às voltas com juízes de primeira instância.
Por que os parlamentares se apegam tanto ao foro especial?
Por que desqualificam os outros juízes, considerados por Renan Calheiros
juizecos de primeira instância? Por que preferem o que deveriam temer?
A resposta está no tempo, isso que nem sempre sabemos
definir, mas sabemos muito bem o que é. Os processos no Supremo levam anos para
ser julgados, o tempo corre a favor dos acusados.
Segundo os últimos números, cerca de 224 parlamentares são
objeto de investigação ou ações no Supremo. De 1988 para cá, 500 foram
investigados e apenas 16, condenados.
Os números atuais são um recorde. Alguns parlamentares
respondem a mais de um processo. Há os recordistas, como o senador Lindberg
Farias (PT-RJ)ou o ex-deputado Paulo Cesar Quartiero, hoje vice governador (de
Roraima), com 13 inquéritos cada um.
Nada tenho pessoalmente contra Quartiero. Desenvolvi mesmo
uma visão crítica sobre a delimitação da área indígena Raposa-Serra do Sol. Mas
andei por lá em algumas ocasiões, inclusive num momento em que Quartiero
destruiu suas instalações de beneficiamento do arroz que produzia, revoltado
com a perda de suas terras.
Como fiz algumas fotos, a Justiça me chamou para depor. Fui
lá, no dia e hora e marcados, e contei o que vi. E disse que tinha as fotos.
Por precaução salvei algumas e as mantive na mesa do computador.
Nunca mais fui chamado. De vez em quando, olhava as fotos e
pensava comigo mesmo: vou mantê-las aí, pode ser que se interessem, que queiram
ao voltar ao tema. Com o tempo retirei-as da minha vista. Nunca mais soube de
nada a respeito desse assunto e, na verdade, perdi o interesse.
Claro que quero voltar a Uiramutã e pernoitar numa pensão de
R$ 20 por noite, rever todas as belezas daquela região de Roraima, na fronteira
com a Venezuela e a Guiana. Mas o destino da Raposa-Serra do Sol, tão discutido
no passado, não é mais pauta de reportagem. Teria de fazer uma grande ginástica
narrativa para que as pessoas se interessassem pelo que, de fato, aconteceu
depois da delimitação da área indígena.
Tudo o que é sólido se desmancha no ar. A frase de Marx,
adaptada por Marshall Berman para o continente americano, tem plena validade
para o Brasil. Estou falando de um dos 500 casos que, por coincidência, se
entrelaçaram com a minha trajetória pessoal.
Um dos inquéritos mais antigos de Renan Calheiros é o que
envolvia sua amante mantida por empreiteira. O caso revelou uma riqueza pessoal
insuspeitada e também se dissolveu no ar. Todas as etapas foram cumpridas no
tempo. Acabou em pizza, o que em termos amorosos quer dizer: em poses para uma
revista masculina.
A passagem do foro privilegiado para o comum não significa
necessariamente uma solução perfeita para o problema. Lembro-me de que o
deputado Bonifácio de Andrada muitas vezes enfatizou, em conversas sobre o
tema, como é perigoso ser perseguido por um juiz no interior, sobretudo no
momento eleitoral, em que as paixões políticas se acendem.
Atualmente, fala-se numa espécie de Corte dedicada
exclusivamente aos parlamentares e outros detentores de foro especial. Não me
parece a melhor saída. No entanto, a pior de todas é continuar empurrando com a
barriga, enquanto os processos dormem no Supremo.
Aquele célebre momento em que Dilma nomeou Lula para
protegê-lo de Sergio Moro deveria ser um ponto de inflexão. Na verdade, o
mensageiro acabou ofuscando nossa memória da mensagem. Quem não se lembra do
Bessias? Depois que Dilma caiu, todos queriam saber do Bessias, por onde
andava, se estava recebendo seu salário, que futuro teria o Bessias num país
sem Dilma na Presidência... Se, de repente, começarmos a chamá-lo de Messias,
sua mensagem pode ter um significado mais amplo. Seu tropeço anunciaria um novo
tempo, sem truques e artimanhas.
Ex-governantes sofrem crueldades, assim como repórteres
investigativos. Uma delas é a dispersão de processos, o que os obriga a correr
de um lado para o outro, tornando-os escravos de uma defesa de Sísifo: mal se
explica aqui e já é preciso sair correndo para se explicar a alguns quilômetros
de distância.
Com todas essas pedras no caminho, é preciso buscar uma
saída. Dizem que uma das conquistas da Lava Jato foi demonstrar que a lei vale
para todos. Mas vale mesmo?
A cadeia de Curitiba está cheia de gente sem mandato. Quem
tem mandato tem polícia particular, com sofisticadas malas para desmontar
grampos, assessorar bandidos no Maranhão. E ministros no Supremo para, com a
rapidez de um relâmpago, livrá-lo das complicações. Mexam com os jagunços de
terno preto e gravata e não faltará uma sumidade jurídica para nos esfregar a
Constituição na cara.
A lei vale para todos? Felizmente, ainda não estão prendendo
quem responde a essa frase com uma gargalhada.
Artigo publicado no Estadão em 04/11/2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário