Ao contrário de Godot, personagem do dramaturgo Samuel
Beckett, ela chegará: a delação premiada de aproximadamente 50 executivos da
Odebrecht e de membros da família que controla a companhia virá à luz nos
próximos meses. Não será o dia do Juízo Final para os cerca de 200 políticos
que, diz-se, são mencionados nos depoimentos feitos ao Ministério Público.
Haverá situações variadas: quem recebeu recursos de caixa 2 e praticou crime de
lavagem de dinheiro e/ou corrupção; quem recebeu esses recursos sem cometer
tais crimes; quem os cometeu em benefício de financiamento de campanha própria
ou de seu partido e/ou de seu enriquecimento pessoal, etc. Caberá à Justiça
individualizar cada caso e as penas respectivas, quando couberem, respeitado o
devido processo legal. E à sociedade, formar juízo a respeito da
responsabilidade de cada um(a) do(a)s acusados(as).
A despeito da diversidade dos casos, as delações da
Odebrecht confirmarão a existência de um sistema de corrupção
político-empresarial que se entranhou nos partidos e no Estado. Mais: mostrarão
que esse sistema operou em governos de várias colorações partidárias, nos
níveis nacional, estadual e municipal, e em favor de políticos de diversas
siglas, embora o PT tenha sido seu principal articulador e beneficiário. A
confirmação do ecumenismo do sistema terá duas consequências importantes:
jogará uma pá de cal na ideia da seletividade partidária da Lava Jato e porá o
PSDB e outros partidos que se opunham ao governo anterior na posição de
acusados, e não de acusadores. A reação do PT à Lava Jato oferece insuperável
exemplo de como não enfrentar essa situação.
Compartilho a preocupação de quem teme os efeitos desse
anunciado terremoto político sobre o atual governo, que mal começa a resgatar o
País do poço cavado pelo anterior. Temo também a eventual inviabilização
jurídica e/ou política de lideranças que farão falta ao País pela experiência,
pelo conhecimento e pela competência inegáveis que têm.
Na política, à diferença da economia, nem sempre a
destruição dos incumbentes leva ao progresso – o economista austríaco Joseph
Schumpeter cunhou a expressão “destruição criativa” para se referir ao avanço
do progresso técnico no capitalismo pela emergência “disruptiva” de novas
empresas e novos empreendedores. A substituição de uma geração de líderes
políticos por outra, principalmente quando os partidos não cuidaram
antecipadamente da necessária renovação de seus quadros, será complicada.
O maior risco, porém, é que, em nome da governabilidade do
País e da estabilidade do sistema político, prevaleça novamente alguma forma de
autoproteção dos “donos do poder”. A democracia depende, em última instância,
de o povo acreditar que eleições, partidos e congressos não são um jogo que
serve apenas aos interesses dos que jogam e pagam o jogo. Essa crença está por
um fio. Se desabar, será difícil reerguê-la e o cenário estará pronto para
demagogos e messiânicos.
Diante desse risco os intelectuais se veem diante de um
desafio. Enquanto a corrupção era um mal imputável exclusivamente às
oligarquias atrasadas (Collor e seu operador PC Farias, para dar um exemplo), a
vida era mais fácil. Quando as investigações da Lava Jato começaram a revelar
que o PT havia organizado um esquema de corrupção nunca antes visto na História
deste país – pela escala e pelo comando superior centralizado –, os
intelectuais petistas, com poucas exceções, divorciaram-se definitivamente da
realidade para atacar com fé cega o Ministério Público, o Judiciário, a
imprensa, ou seja, instituições centrais da democracia brasileira. Todas seriam
culpadas. Menos o seu partido, vítima de uma “conspiração das elites”.
Os intelectuais petistas de maior bom senso evitaram abraçar
teses estapafúrdias – como a das supostas ligações dos procuradores da Lava
Jato e do juiz Sergio Moro com o governo americano, imaginariamente interessado
em apear o PT do poder para roubar do Brasil as riquezas do pré-sal. Preferiram
denunciar a “criminalização da política”, como se os procuradores e o juiz
estivessem atentando contra a democracia ao investigar crimes cometidos por
políticos do PT e partidos aliados. Esqueceram-se de que quem pratica a
corrupção, sendo agente político, é que criminaliza a política, e não quem
investiga ou pune essa prática com base em provas produzidas dentro do devido
processo.
O sentido de missão revelado pelo juiz e pelos procuradores
de Curitiba foi transformado em atributo negativo: seriam “missioneiros”,
imbuídos de um cristianismo conservador, ligados à Opus Dei, evangélicos, etc.
A “esquerda” passou a estigmatizar um grupo de servidores públicos concursados,
bem preparados tecnicamente, empenhados em deslindar um sistema de corrupção
comandado por partidos governistas e um oligopólio de grandes empreiteiras. Que
beleza!
Se o PSDB quiser um lugar ao sol no lado mais luminoso da
política brasileira terá de mostrar que nem todos são iguais. Na avaliação
política das culpas e responsabilidades o tribunal terá duas instâncias: a opinião
pública e o grosso do eleitorado. Na primeira haverá algum espaço para um
debate nuançado sobre o caráter mais ou menos sistêmico ou o grau mais ou menos
profundo de práticas de corrupção. No segundo, a exemplaridade, o cortar na
carne, a coragem de se arriscar com novas lideranças farão toda a diferença, a
depender da extensão e profundidade dos danos causados pelas delações de
Odebrecht.
No Brasil oscilamos entre a impunidade e a violência,
desigualmente distribuídas. A punição de crimes pela Justiça, respeitado o
devido processo legal, é uma das maiores conquistas da civilização. Só se
redime quem paga por seus erros. Isso vale para os indivíduos e vale também
para um país. Não pode haver democracia, não pode haver sociedade decente, fora
do império da lei, igual para todos. Doa a quem doer.
Sérgio Fausto é superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do
Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University,
é membro do Gacint-Usp.
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