Foram 16 longos meses de uma das campanhas políticas mais
bizarras e de baixo nível da história dos Estados Unidos. Ela chegará,
finalmente, a seu fim nesta terça-feira, dia 8, quando milhões de cidadãos
americanos irão às urnas para escolher quem ocupará a Casa Branca a partir de
2017. Em meio a acusações de crime no uso de informações confidenciais do
governo, desviadas por uma conta de e-mail pessoal, de um lado, e denúncias de
agressão sexual e fraude fiscal, de outro, a disputa entre a ex-secretária de
Estado, a democrata Hillary Clinton, e o empresário e ex-apresentador de
reality show, o republicano Donald Trump, carregará a mancha de um ciclo
eleitoral em que a discussão política foi relegada a mera coadjuvante. Acabou
eclipsada em meio à névoa de investigações, discursos histriônicos e sem base
na realidade – estes últimos, uma cortesia quase exclusiva do candidato
republicano. Por causa desse ambiente, o eleitor americano chega às urnas mais
cético e desanimado do que nunca com os políticos de Washington. E isso às
vésperas de uma eleição que pode ser histórica, ao conduzir pela primeira vez
uma mulher à Casa Branca.
Como num resumo da campanha, os últimos dias foram
particularmente turbulentos para ambos os candidatos. O episódio mais
incandescente explodiu na sexta-feira,
dia 28 de outubro. A 11 dias da eleição, o diretor do FBI, James Comey, enviou,
surpreendentemente, uma carta a senadores americanos. Nela, relatou a
descoberta de novos e-mails que poderiam ter relação com as investigações sobre
o uso irregular de uma conta particular por Hillary para tratar de informações
de governo no período em que ela foi secretária de Estado do governo Obama,
entre 2009 e 2013. A carta de Comey surgiu como uma bomba porque, a princípio,
as investigações do FBI haviam sido encerradas em julho, sem que nada de
incriminador tivesse sido achado contra Hillary, além de um desvio de conduta.
As novas correspondências eletrônicas foram encontradas em um computador usado
por Anthony Wiener, um ex-congressista democrata envolvido em sucessivos
escândalos por buscar sexo on-line – na última ocorrência, uma menor foi
identificada entre seus alvos. Sua agora ex-mulher Huma Abedin é uma das
assessoras mais próximas de Hillary, o que explicaria a presença das mensagens
no computador compartilhado pela família. Pela vagueza do documento, e das
declarações que seguiram, Comey foi acusado de burlar regras que garantem a não
interferência do FBI no pleito presidencial. Isso lhe rendeu comparações até
com o primeiro – e mais polêmico – diretor da Polícia Federal, J. Edgar Hoover.
O conteúdo da carta, mesmo que pouco esclarecedor, teve um
impacto imediato nas pesquisas de intenção de voto. Antes da retomada do
escândalo dos e-mails, Hillary ostentava até 8 pontos de vantagem em relação a
Trump nas médias das pesquisas nacionais. Conforme as pesquisas, essa vantagem
foi reduzida, na semana passada, para pouco menos de 2 pontos, na média. É
preciso lembrar que essas pesquisas nacionais são apenas uma referência do
humor do eleitor. A eleição americana é decidida num Colégio Eleitoral, que
atribui um número específico de delegados para cada estado. Nas pesquisas que
projetam a quantidade de delegados de cada candidato, a vantagem de Hillary é
mais folgada. Ela aparece à frente de alguns dos mais disputados swing states,
os estados pêndulos, que variam sua escolha entre republicanos e democratas de
eleição para eleição. Pensilvânia, Wisconsin e Colorado são alguns desses
estados – e Hillary, segundo as pesquisas, deverá ganhar lá. Na Flórida e na
Carolina do Norte, outros estados pêndulos, Hillary e Trump estão tecnicamente
empatados.
Assim, apesar do revés, Hillary ainda permanece no posto de
favorita – os levantamentos mais confiáveis apontam que a democrata tem entre
66% e 86% de chances de vencer. Um dos motivos do favoritismo de Hillary é a
preferência das mulheres solteiras, negros, latinos e outras minorias raciais,
grupos que, segundo as projeções, devem compor a maior fatia do eleitorado
americano neste ano. Essa mudança demográfica pode impactar disputas em estados
importantes, como o Arizona, antes considerado território cativo dos
republicanos.
Ainda assim, antes da abertura das urnas, a ansiedade
reinava entre os democratas. Mesmo que a reabertura da investigação do caso dos
e-mails não traga, ao final, nenhum fato relevante, a carta-bomba de Comey
serviu para ressuscitar um velho problema de Hillary que ela tentou mitigar,
sem muito sucesso, durante a campanha: a ex-secretária de Estado, depois de
quase 40 anos de vida pública, ainda é vista pela maioria dos americanos como
uma pessoa pouco confiável e manipuladora.
Os americanos cunharam uma expressão para designar os fatos
políticos de teor polêmico que surgem na reta final das eleições e podem
impactar os resultados: são as “surpresas de outubro”. Elas entraram no
vocabulário eleitoral americano a partir da disputa entre o republicano Ronald
Reagan e o democrata Jimmy Carter, então
presidente, em 1980. Nesse caso, a “surpresa de outubro”, temida por Reagan,
seria uma repentina solução para a crise dos reféns no Irã. Ela não ocorreu – e
Reagan venceu. “As surpresas de outubro tendem a ter um impacto em eleitores
que já têm uma predisposição por um candidato. Eles estão preparados para elas
de alguma forma”, diz o historiador político Julian Zelizer, da Universidade
Princeton.
Para Zelizer, as surpresas de outubro não são tão
surpreendentes assim – o que não impede uma reviravolta em 2016. “Tudo o que
foi revelado sobre Trump reforçou sua reputação de machista. O vídeo (em que
Trump se vangloria de assediar e abusar de mulheres) expressou essa imagem de
uma forma que nada tinha conseguido até então. A carta do FBI tende a reforçar
a ideia de que Hillary não é confiável”, diz o historiador. “Em outras
eleições, tivemos surpresas de outubro que não afetaram o resultado. A
diferença agora é a quantidade de fatos novos surpreendentes. Isso afetará as
eleições? Ainda não está claro.”
Para Hillary, a possibilidade de a “maldição dos e-mails”
voltar a assombrá-la ao fim de uma suada campanha durante a qual se manteve
quase sempre na dianteira é aterradora. O caso dos e-mails, à primeira vista,
nem parecia ter um potencial tão destrutivo. Durante seu período como
secretária de Estado, Hillary usou um e-mail pessoal para as comunicações
oficiais do cargo, em vez do endereço do Departamento de Estado – o
procedimento que deve ser cumprido por qualquer servidor público. A conta
particular era mantida num servidor privado, montado no porão de sua casa em
Nova York. Usar o e-mail privado é considerado grave porque informações de
segurança nacional podem vazar.
A manobra é irregular pelos estatutos do Departamento de
Estado, mas não fere nenhuma lei federal. Por isso, até as revelações da semana
passada, Hillary não tinha enfrentado um processo criminal sobre a questão. Sua
punição se limitou a uma reprimenda pública de Comey, em julho, quando o FBI
declarou a investigação encerrada. O uso da conta particular levantou, porém, a
suspeita de que Hillary tinha a intenção
de burlar uma possível investigação ou divulgação de suas mensagens de
trabalho. O caso prosperou também porque Hillary não apresentou uma explicação
plausível sobre sua conduta. Ela, afinal, reconheceu ter errado, mas não
apresentou as justificativas para seu comportamento.
O caso dos e-mails acabou, assim, engrossando a lista de
“erros” cometidos por Hillary ao longo de sua vida pública que contribuíram
para que a candidata, mesmo sendo considerada qualificada, seja muito
impopular. Um levantamento de julho feito pelo instituto Gallup aferiu que 58% dos americanos tinham
uma imagem desfavorável de Hillary. É o mesmo índice de Trump, um claro indício
da insatisfação dos eleitores americanos com a classe política.
Não bastasse a infração que ganhou ares de escândalo, houve
ainda uma leva de e-mails divulgados pelo WikiLeaks em outubro, depois de serem hackeados do computador do
coordenador da campanha democrata, John Podesta. Neles, nenhuma revelação
eletrizante surgiu. Mas, mais uma vez, os e-mails de Podesta serviram para
disseminar a imagem de Hillary como uma pessoa com duas condutas: uma privada,
a portas fechadas, para apoiadores importantes e doadores de recursos de
campanha, e outra pública, para o eleitor médio do Partido Democrata. Entre as
mensagens vazadas, havia trechos dos discursos que Hillary fizera em Wall
Street, já fora do Departamento de Estado. Em uma palestra, contratada pelo
Itaú, o banco brasileiro, Hillary defendeu a ampliação dos acordos de
livre-comércio – proposta da qual tentou se distanciar como candidata.
Alguns fatores relacionados à vida pessoal podem explicar a
natureza secreta de Hillary. “Ela tem uma tendência à blindagem que
parcialmente vem dos traumas dos anos 1990, quando as finanças e a vida íntima
marital dos Clintons foram expostas e divulgadas”, diz Gil Troy, professor da
Universidade McGill e autor de The age of Clinton: America in the 1990s (A Era dos Clintons: América nos anos
1990). Uma parte dessa percepção é também oriunda do bom e velho machismo, que
tende a punir desproporcionalmente as mulheres em posição de poder que adotam
condutas semelhantes a de seus colegas do sexo masculino. As mulheres em cargos
de comando costumam ser julgadas de maneira mais dura que os homens. “O
machismo tem um papel na percepção pública de Hillary. Por ela não ser um dos
garotos, como Trump e Bill (Clinton), Hillary é vista como dissimulada e pouco
confiável, quando na verdade ela é provavelmente muito mais confiável que os
dois”, afirma Troy.
Na campanha, Hillary tentou se “humanizar” aos olhos dos
eleitores jovens, que durante as primárias democratas se empolgaram mais com o
senador Bernie Sanders. No Humans of New York, um perfil do Facebook popular
entre os millennials americanos, Hillary apareceu em setembro com uma história
que explicaria, em parte, sua opção pelo secretismo. Na publicação, Hillary
contou como, durante um exame para a Faculdade de Direito em Harvard, ela e uma
colega foram agredidas verbalmente pelos homens da sala, que diziam que elas
nem deveriam estar ali. “Eu não podia responder. Eu não tinha o luxo de me
distrair porque não queria errar na prova. Então eu só olhei para baixo e
esperei que o inspetor entrasse na sala. Eu sei que posso ser vista como pouco
conectada ou fria e sem emoções. Mas eu tive de aprender como uma jovem mulher
a controlar minhas emoções. E esse é um caminho difícil de percorrer.” A
publicação ultrapassou as 800 mil curtidas e os 200 mil compartilhamentos. O
engajamento na campanha da primeira-dama, Michelle Obama, vista como uma figura
de caráter inimputável, foi outro esforço democrata para aumentar a
credibilidade de Hillary.
Em desvantagem na corrida,Trump recebeu a carta de Comey
como um presente divino e tentou explorar ao máximo esse trunfo inesperado. O
republicano passou a semana elogiando o diretor do FBI e martelando que a
questão dos e-mails seria “maior que Watergate” – uma bobagem, como muitas
ditas por Trump, que mesmo sem base na realidade são absorvidas sem
questionamento por seus apoiadores mais fervorosos. “De forma nenhuma os
e-mails de Hillary são ‘maiores que Watergate’, nem perto disso. Watergate
tinha a ver com um presidente criminoso e 48 auxiliares/coconspiradores que
foram julgados culpados”, escreveu em seu perfil no Twitter Carl Bernstein, um
dos jornalistas responsáveis pelas publicações que levaram à eclosão de
Watergate, o escândalo que derrubou Richard Nixon em 1974. “Não quero minimizar
a imprudência e a pouca sinceridade em relação aos e-mails e ao servidor, mas,
de maneira geral, está num nível diferente”, disse Bernstein, também autor de
uma extensa biografia sobre Hillary.
Trump tampouco ficou incólume às “surpresas de outubro”.
Quando ainda se desdobrava para se livrar das acusações de assédio e agressão
sexual, o jornal The New York Times, na segunda-feira, dia 31 de outubro,
revelou que, por meio de manobras de legalidade duvidosa, Trump evitou pagar
milhões de dólares em Imposto de Renda. A revelação confirmou as suspeitas há
muito levantadas por opositores de Trump, e sutilmente referendadas pelas
piadas que o próprio bilionário fazia sobre o assunto: o republicano não pagou
o que devia ao Erário.
Trump não cairá sem atirar. Antes da carta de Comey, quando
despencava nas pesquisas e os próceres republicanos o abandonavam, o bilionário
feriu uma regra de ouro da democracia americana ao questionar o sistema
eleitoral do país. “Esta eleição está completamente fraudada, tudo está
fraudado”, repetiu a seus seguidores. No último debate com Hillary, Trump se
recusou, inclusive, a confirmar que aceitaria o resultado da eleição. “Suspeito
de que Trump vai reconhecer se perder. Ele não pode manter esse discurso para
sempre e, eventualmente, perderá qualquer processo legal caso a corrida não
termine muito apertada. A maior preocupação é em relação aos eleitores que
podem perder a fé no sistema ou, pior, agir de maneira violenta depois das
eleições”, diz Hans Noel, cientista político da Universidade Georgetown. Os
impactos de sua retórica virulenta já foram vistos. Uma eleitora de Trump em
Iowa foi presa na semana passada por tentar votar duas vezes na eleição
antecipada, acreditando que seu voto, “o primeiro”, não seria contabilizado.
Trump chegou à reta final da corrida presidencial fazendo o
que sempre fez: disparando impropérios e barbaridades e destilando ódio – ele
deverá entrar para a história como o maior responsável pelo baixo nível visto
na campanha eleitoral de 2016. Hillary, entre trancos e barrancos, chega ao fim
de uma empreitada em que conseguiu manter o equilíbrio, apesar do adversário
hidrofóbico. Aos olhos do público, sua aura de pessoa fria, inacessível,
distante e com pendor para os segredos parece ter suplantado, porém, as
credenciais de sua longa carreira pública que a qualificam como uma das
candidatas mais preparadas a já concorrer à Casa Branca.
O eleitor americano parece consciente do que está em jogo:
em uma pesquisa do Gallup, 71% dos entrevistados afirmaram entender que esta
disputa é mais importante que as anteriores. Em 2016, além da tradicional
competição bipartidária, os candidatos à Presidência americana representam
também duas ideias diametralmente opostas: a de um Estados Unidos aberto,
multicultural e inclusivo versus outro fechado, protecionista, tacanho,
antiquado e racista. O mundo aguarda com ansiedade a escolha americana.
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