Artigo de Marina Silva, Poder 360
Por iniciativa de parlamentares incomodados pelas
investigações da Operação Lava-Jato, abriu-se no Congresso Nacional um debate
sobre abuso de poder e de autoridade. Minha caracterização do que vem a ser
esse abuso é rápida e baseada em exemplos.
Um grupo de parlamentares tem a ousadia de querer
introduzir, num projeto de iniciativa popular que institucionaliza o combate à
corrupção, uma emenda que dá anistia ao crime eleitoral de caixa dois. O
presidente do Senado, investigado pela polícia, mobiliza o Poder Legislativo
para tolher os poderes da Justiça. O constitucionalista presidente da República
procura justificativas para apoiar, no Congresso, tais ações que visam salvar a
si mesmo e aos seus. Forma-se uma força tarefa, com partidos e partidários da
oposição e da situação, uns operando diretamente, outros por omissão, para
desmoralizar, enfraquecer e, por fim, desmontar a Lava-Jato. Abuso de poder e
de autoridade é um assunto muito sério para ser usado como uma tentativa de
safar-se.
A sociedade acompanha os esforços do Ministério Público e da
Polícia Federal que proporcionam coerência a uma justiça que não se intimida. A
expectativa e o apoio à Justiça é a continuidade de um desejo manifestado nas
ruas. Desde 2013, milhões de brasileiros se manifestam em grandes mobilizações
que se autoconvocam à revelia de organizações partidárias ou sindicais e de
seus velhos líderes, carismáticos ou burocráticos. Os que tentaram a aventura
oportunista de surfar a grande onda, hoje lutam para salvar-se do afogamento. A
tudo e todos que representam um poder que se demonstrou ilegítimo, a sociedade
desautorizou com o velho refrão musical: “você abusou”.
Infelizmente, a insurgência das ruas não foi respondida
senão com mais abuso: contra a lei, contra o povo, contra a justiça e a
polícia, até mesmo contra os fatos, a realidade e o bom-senso. A situação
política do Brasil tornou-se tão absurda, que parece não existir mais poder ou
autoridade, somente o abuso. Nossa salvaguarda são as instituições, que vêm se
consolidando desde a retomada da democracia e – graças a Deus e à Constituição
cidadã de 88 – insistem em funcionar.
Como se pode pretender varrer para debaixo dos tapetes verde
e azul do Congresso o Petrolão, as fraudes nos fundos de pensão, dos
empréstimos consignados, dos propinodutos, de Belo Monte, das suspeitas
envolvendo dois ex-governadores do Rio de Janeiro, dos crimes de corrupção
confessados por empreiteiros, diretores, doleiros e marqueteiros, do crime de
caixa dois, de todo esse resíduo tóxico do abuso de poder e autoridade que
escorre a céu aberto pelo Brasil? Como podem tantos operadores da política,
usando os cargos que ocupam na República, diante dos olhos da nação indignada,
desprezarem os pesos e medidas da Lei e da ética e demonstrarem tamanho apego a
esse objeto de prazer em que se tornou o poder?
Que a sociedade não tenha todas as respostas é típico destes
tempos difíceis que vivemos. Nossa esperança, entretanto, persiste nas
perguntas boas e incômodas. Mantendo nossas perguntas brasileiras e indignadas,
tomo ainda emprestada a indagação de Adolfo Guggenbuhl-Craig, para quem, em um
país democrático, a pergunta é como criar mecanismos legítimos, que possam
impedir o avanço da psicopatia política. Sua sugestão é que talvez a melhor
resposta consista em fazer com que o poder disponível nas mais altas posições
administrativas fique tão reduzido que não chegue “a atrair os psicopatas”. Não
deixa de ser uma boa pergunta e uma boa indicação de resposta.
É exatamente isso que venho tentando dizer quando repito que
a Lava-Jato pode estar fazendo uma espécie de reforma política na prática. Isso
será possível se, além de desmontar as estruturas corruptas, conseguirmos
institucionalizar o combate contínuo à corrupção aprovando – sem “jabuti”, é
claro – a emenda das dez medidas.
A sociedade terá retirado um pouco de poder daqueles que
dele abusam. Em terreno tão difícil, será, sem dúvida, um importante passo à
frente.
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