quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O ABUSO NO PODER

Artigo de Marina Silva, Poder 360
Por iniciativa de parlamentares incomodados pelas investigações da Operação Lava-Jato, abriu-se no Congresso Nacional um debate sobre abuso de poder e de autoridade. Minha caracterização do que vem a ser esse abuso é rápida e baseada em exemplos.
Um grupo de parlamentares tem a ousadia de querer introduzir, num projeto de iniciativa popular que institucionaliza o combate à corrupção, uma emenda que dá anistia ao crime eleitoral de caixa dois. O presidente do Senado, investigado pela polícia, mobiliza o Poder Legislativo para tolher os poderes da Justiça. O constitucionalista presidente da República procura justificativas para apoiar, no Congresso, tais ações que visam salvar a si mesmo e aos seus. Forma-se uma força tarefa, com partidos e partidários da oposição e da situação, uns operando diretamente, outros por omissão, para desmoralizar, enfraquecer e, por fim, desmontar a Lava-Jato. Abuso de poder e de autoridade é um assunto muito sério para ser usado como uma tentativa de safar-se.
A sociedade acompanha os esforços do Ministério Público e da Polícia Federal que proporcionam coerência a uma justiça que não se intimida. A expectativa e o apoio à Justiça é a continuidade de um desejo manifestado nas ruas. Desde 2013, milhões de brasileiros se manifestam em grandes mobilizações que se autoconvocam à revelia de organizações partidárias ou sindicais e de seus velhos líderes, carismáticos ou burocráticos. Os que tentaram a aventura oportunista de surfar a grande onda, hoje lutam para salvar-se do afogamento. A tudo e todos que representam um poder que se demonstrou ilegítimo, a sociedade desautorizou com o velho refrão musical: “você abusou”.
Infelizmente, a insurgência das ruas não foi respondida senão com mais abuso: contra a lei, contra o povo, contra a justiça e a polícia, até mesmo contra os fatos, a realidade e o bom-senso. A situação política do Brasil tornou-se tão absurda, que parece não existir mais poder ou autoridade, somente o abuso. Nossa salvaguarda são as instituições, que vêm se consolidando desde a retomada da democracia e – graças a Deus e à Constituição cidadã de 88 – insistem em funcionar.
Como se pode pretender varrer para debaixo dos tapetes verde e azul do Congresso o Petrolão, as fraudes nos fundos de pensão, dos empréstimos consignados, dos propinodutos, de Belo Monte, das suspeitas envolvendo dois ex-governadores do Rio de Janeiro, dos crimes de corrupção confessados por empreiteiros, diretores, doleiros e marqueteiros, do crime de caixa dois, de todo esse resíduo tóxico do abuso de poder e autoridade que escorre a céu aberto pelo Brasil? Como podem tantos operadores da política, usando os cargos que ocupam na República, diante dos olhos da nação indignada, desprezarem os pesos e medidas da Lei e da ética e demonstrarem tamanho apego a esse objeto de prazer em que se tornou o poder?
Que a sociedade não tenha todas as respostas é típico destes tempos difíceis que vivemos. Nossa esperança, entretanto, persiste nas perguntas boas e incômodas. Mantendo nossas perguntas brasileiras e indignadas, tomo ainda emprestada a indagação de Adolfo Guggenbuhl-Craig, para quem, em um país democrático, a pergunta é como criar mecanismos legítimos, que possam impedir o avanço da psicopatia política. Sua sugestão é que talvez a melhor resposta consista em fazer com que o poder disponível nas mais altas posições administrativas fique tão reduzido que não chegue “a atrair os psicopatas”. Não deixa de ser uma boa pergunta e uma boa indicação de resposta.
É exatamente isso que venho tentando dizer quando repito que a Lava-Jato pode estar fazendo uma espécie de reforma política na prática. Isso será possível se, além de desmontar as estruturas corruptas, conseguirmos institucionalizar o combate contínuo à corrupção aprovando – sem “jabuti”, é claro – a emenda das dez medidas.
A sociedade terá retirado um pouco de poder daqueles que dele abusam. Em terreno tão difícil, será, sem dúvida, um importante passo à frente. 
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