Haverá inúmeras explicações para a vitória retumbante de
Donald Trump no país que abriga a maior democracia do mundo, afora algumas já
lembradas: a indignação silenciosa da maioria branca e rural norte-americana,
que perdeu prestígio, poder e dinheiro na esteira da globalização; o ideário
nacionalista que toma corpo sob o fluxo crescente de imigrantes, considerados
invasores e destruidores de culturas nacionais; a tradição conservadora dos
republicanos que não transigem sobre temas que lhes são sagrados, como o aborto;
a identificação do eleitor por um perfil que encarne o conceito de mudança e
seja contraponto à política tradicional.
O fato é que a escolha do bilionário dos negócios
imobiliários terá efeitos sobre a esfera da política em todos os recantos do mundo.
Diferentemente de políticos tradicionais que se utilizam das artes cênicas para
desempenhar papel de ator no palco eleitoral, Trump foi, ele próprio, o
espetáculo. O eleitorado norte-americano
não viu ou ouviu um arremedo de artista exercitando o discurso político,
mas alguém do próprio mundo da diversão, que não mediu palavras para acusar,
achincalhar, provocar medo, dividir a população. Trump fez questão de expressar
palavras duras, sem receio de que suas atitudes fossem consideradas
“politicamente incorretas”. Incorporou o senso comum, interpretando a alma da
maior parcela do eleitorado, apresentando-se como o único capaz de realizar o
sonho de repor a América na antiga posição de grandeza (“Make America great
again”).
A pós-verdade
As democracias formam o terreno onde se desenvolvem os
códigos éticos e morais. Mas o que estamos presenciando, nos últimos tempos, é
a degradação de princípios e valores em razão das grandes promessas não
atendidas pelas democracias, como lembra Norberto Bobbio, entre as quais a
educação para a cidadania, a segurança coletiva, o combate ao poder invisível,
a transparência dos governos, a igualdade dos cidadãos. A frustração social se
expande sob a onda de disfunções e desvios nas estruturas do Estado
democrático, como a personalização do poder, a política como negócio escuso, a
deslealdade, as emboscadas, o que ensejou um recente ensaio da inglesa The
Economist sobre o ciclo da pós-verdade.
Exemplo desse painel de deturpações foi o discurso de Trump
na campanha. Entre outras aberrações, disse que Obama não era cidadão
americano; foi um dos criadores do Estado Islâmico; que os Clintons eram
assassinos e mais: o pai de um rival de Kennedy esteve com Lee Harvey Oswald um
dia antes de o presidente ser assassinado em Dallas. A manipulação, sabe-se, é
coisa antiga. Hitler usou a mentira para dominar um povo. Políticos sempre
usaram a falsidade para traduzir sua visão de mundo. Hoje, tornou-se
instrumento para reforçar preconceitos. A “pós-verdade” faz parte do DNA do
Estado-Espetáculo, onde Donald Trump toma assento na cadeira principal. Ele
chega à cadeira de presidente da maior democracia mundial sem a estatura que o
cargo requer.
Para ganhar evidência, surfou na contracultura política,
invertendo a cultura dominante. Puxou eixos cognitivos para se identificar com
a maioria: a simplicidade (“sou do jeito de vocês”), a sinceridade (“falo e
denuncio o que vocês estão sentindo”) e a solidariedade (“minha alma é igual a
sua, portanto, confie em mim e você está elegendo a pessoa que fará seu sonho
acontecer”). Praticou o exercício de fuga da realidade. O Homem-Espetáculo
adentra, assim, à Casa Branca, transformando-se no mais poderoso do planeta. Em
oito minutos, pode acionar o botão de uma máquina, sempre carregada ao seu
lado, e...boom..! provocar o apocalipse nuclear.
As promessas e a
fanfarronice de Trump serão executadas? Difícil. Por mais obtuso que seja o
líder de uma Nação, será praticamente impossível, hoje, governar sozinho. A
interdependência e a imbricação de fronteiras físicas e culturais engendram a
política contemporânea. A real politik acabará despertando seu senso
empedernido. Em suma, será pouco crível a construção de um Muro separando EUA e
México (ao custo de US$ 25 bilhões), ou a expulsão de milhões de imigrantes.
Alguns milhares, talvez. Parcela do discurso de Trump deverá ser praticado, sob
pena de sua desmoralização pública e decepção do eleitorado que nele confiou.
A contracultura criada pelo bilionário deverá inspirar
modelos conservadores e nacionalistas aqui e alhures. É possível que a execução
de certas propostas receba o endosso de grande parcela da população. Se isso
ocorrer, será exemplo do sucesso de outsiders na política. Da mesma forma, é
provável que movimentos de oposição floresçam em alguns lugares, reunindo
grupamentos nas frentes de gêneros, movimentos migratórios e correntes de
minorias étnicas. O empoderamento de grupos conservadores e seu contraponto, a
reação de núcleos progressistas, são dois fenômenos que podem se desenhar no
mapa das tendências.
Brasil poderá ganhar
Quanto ao Brasil, a eleição de um presidente republicano nos
Estados Unidos não deverá impor tantos obstáculos quanto se prenuncia. Vale
recordar que os republicanos têm tradição de serem mais abertos aos mercados
que os democratas. Menos protecionistas. O novo presidente vai contrariar a
identidade de seu partido? Ora, cada Nação possui uma identidade, potenciais e riquezas, objetos de
troca. O Brasil abriga um dos maiores celeiros de alimentos do mundo. Deverá
ganhar mais força ante o quadro de carência alimentar. Território continental,
com uma economia entre as maiores do
planeta, estará ao lado de potências na mesa dos acordos comerciais. Se, por
exemplo, o novo presidente dos EUA vier a taxar a importação de produtos chineses
em 45%, como prometeu em campanha, para onde a China deverá caminhar? Para a
Europa e para a América Latina. O Brasil pode acabar expandindo seus negócios
com os chineses.
A essa altura, já há quem aposte: o rugido de leão de Donald
Trump, durante a campanha eleitoral, se transformará, mais cedo ou mais tarde,
em miado de gato.
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