Astier Basílio, Estado da Arte, Estadão
Um escudo ético
Semana passada, Lula completou 71 anos. Na tribuna de um
plenário vazio do Senado Federal, a efeméride foi lembrada pela companheira não
só de partido, mas de encrencas na justiça também, Gleisi Hoffmann, ambos réus
na Lava Jato.
A certa altura do discurso, Gleisi leu um artigo do biógrafo
Fernando Moraes eivado de pieguice e sentimentalismo. Foi uma espécie de
prelúdio louvaminheiro. Ao fim da leitura, Gleisi deu um giro na retórica e
redimensiou sua fala no vocativo e começou a chamar o aniversariante de
“senhor” e a cantar-lhe loas: “O senhor que tanto fez pelo povo brasileiro,
tanto fez pelo povo pobre, que tanto melhorou a vida do povo, está recebendo um
tratamento como esse; tá recebendo um tratamento moralista, que na realidade
não é pra procurar saber se o senhor cometeu erros, não é pra lhe julgar, é pra
lhe condenar…”.
Quem diz que Lula está condenado já o absolveu.
Mas em que se fiou a defesa da senadora pelo Paraná, que de
tão repisada nos mesmos argumentos mais parece um catálogo de diretrizes e
palavras de ordem definidas pelo diretório? Disse algo que contribuísse para
elucidar questões referentes às acusações? Tratou, do ponto de vista jurídico,
de inconsistências nas denúncias apresentadas? Refutou depoimentos de
delatores?
Nada disso.
Brandiu-se, o que se encena sempre que o PT enfrenta alguma
acusação de corrupção, uma espécie de
escudo de honra que pode ser sintetizado assim: para realizar políticas de
distribuição de renda atendendo aos pobres, que sempre foram esquecidos pelo
estado brasileiro, o Partido dos Trabalhadores reivindica, perante a sociedade,
o direito de transgredir a lei.
Era como se o roubo fosse justificado se, e tão somente se,
cometido em nome da causa, em nome do ideal de um projeto virtuoso, que visa
melhorar a vida dos mais necessitados e construir um mundo melhor.
É o que disse a própria Gleisi Hoffmann, no longínquo ano de
2011. Na ocasião, pilhado com revelações
sobre aumento patrimonial, o então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci
começava a ser fritado dentro do próprio partido. Quem disparou o tiro certeiro
foi a senadora. Tão certeiro que foi a própria Gleisi quem ocupou o lugar
quando defenestrou-se o “Italiano”, codinome com o qual Palocci era na surdina
referido, em negócios não muito republicanos, conforme investigação da Polícia
Federal, com base nos anexos da delação da Odebrecht.
Em matéria de Cátia Seabra, publicada em 1 de julho de 2011
na Folha de São Paulo, narra-se que a senadora participou de um almoço com o
ex-presidente Lula, durante o qual exigiu a cabeça do colega. “Gleisi, segundo
participantes, disse que os mensaleiros cometeram erros graves em nome de um
projeto coletivo. E que esse não era o caso de Palocci”.
Quem manifestou pensamento idêntico a esse foi o jornalista
esportivo Juca Kfouri. Para o ex-integrante de grupo de guerrilha armada, Ação
Libertadora Nacional (ALN), e contumaz defensor do PT, só é mesmo condenável a corrupção em
benefício próprio. A rapina em nome da causa é merecedora de um degrau de
distinção.
Ano passado, Kfouri publicou um texto na Folha de São Paulo.
“Por que gente milionária quer sempre mais e mais dinheiro?” Começa com uma
velada crítica ao capitalismo, depois enumera alguns políticos cuja “ganância
levou à desgraça”. Cita vários. Eduardo Azeredo, Collor, Maluf e José Dirceu, o
único que merece suas lágrimas. A
decepção se dá porque ficou provado que o ex-colega de guerrilha operava para
si próprio e não em nome dos companheiros.
Para finalizar o artigo, Kfouri relata o encontro que teve
com Nabi Abi Chedid. “Homem de direita” com que se encontrara no aeroporto de
Congonhas, logo depois do “mensalão”.
“Não te disse que no poder todos ficam iguais”. Reproduzo a resposta de
Kfouri: “Pego de surpresa, reagi ingenuamente: ‘Não se justifica, mas pelo
menos não é para enriquecimento pessoal’.”
O rei do cangaço
Lula nasceu em 1945. No interior de Pernambuco. Naquele
mesmo estado, apenas 7 anos antes, era morto e decapitado, Virgulino Ferreira,
o Lampião. Por várias décadas, o cangaceirismo expôs as vísceras do abandono de
uma região que crescera à margem do Estado, cujo braço elementar e fundamental,
a Justiça, não era capaz de alcançar as demandas existentes, fazendo com que,
naqueles ermos sem lei, nem rei, prevalecesse a vingança e a justiça privada.
Sertão, diz-se, advém, etimologicamente, de “desertão”,
aumentativo de deserto. Verdade ou não,
este ambiente, ao contrário do litoral, fundou-se à margem da presença do
Estado. Foi por esta razão que a sociedade, daquele lugar afastado, admitiu que
alguém, desfeitado em seu direito de justiça, vítima de uma ação criminosa,
pudesse agir à margem da lei até que empreendesse seu acerto de contas. Era
como se a sociedade conferisse um escudo ético a quem seguisse em sua jornada
de vingança.
Esta tese não é minha, mas de Frederico Pernambucano de
Mello, autor do clássico “Guerreiros do Sol” (1985). O cangaceiro, antes de
cair na vida de crimes, elaborava sua narrativa. Era alguém desassistido cujo
pai fora assassinado, cuja família fora massacrada, cuja propriedade fora
tomada. Era, em suma, alguém que não tinha como levar sua demanda a um juízo
constituído pelo estado, àquela altura ausente ou viciado, tendo, portanto, que
agir por suas próprias mãos.
Porém, o cangaço era um negócio, um meio de vida. E Lampião,
para continuar com o seu escudo intacto, e manter-se na vida de crimes,
recusou-se a matar o algoz de seu pai ou não se empenhou para isto. Continuo me
acostando ao que diz Pernambucano de Mello. Ver o cangaceiro como representação
do oprimido é um exotismo da leitura marxista acadêmica. Não havia qualquer
confrontação entre o bandido de chapéu adornado e os donos do poder local, os
coronéis, que lhe davam coito e que serviam inclusive de banco, guardando o
produto de seus roubos. Ao contrário de haverem-se em luta de classes,
sentavam-se na mesa juntos e pactuavam.
O Planalto Central como terra de ninguém
Ao verificarmos que mais de 200 parlamentares estão com
implicações na Lava Jato, entre os quais figuras de outros partidos como José
Serra, do PSDB, Renan Calheiros, do PMDB, e tantos outros, vemos que é possível fazer um paralelo com o
sertão devastado pelo banditismo nas primeiras décadas do século passado e os
arredores do Planalto Central, cujas mãos ficam atadas pelas bridas do foro
privilegiado, no qual corruptos galopam impunes.
Num estado, como o brasileiro, em que a corrupção campeia,
em que o braço da justiça não consegue alcançar os políticos, em que todos
roubam, ter um discurso a favor dos pobres serviu por um tempo como uma espécie
de escudo de honra do PT.
Antes de estar no poder, vendeu-se como diferente de todos.
Bateu nesta tecla por 20 anos. Pego com as calças curtas fazendo os mesmos
crimes que condenara, passou a reivindicar o direito de ser igual aos outros,
de quem sempre se considerou superior.
No lugar de enfrentar seus erros e de encarar seus problemas
fazendo uma autocrítica, o PT enveredou e envereda ainda pelo truque retórico
de transformar as supostas virtudes de seu governo nos únicos “crimes” pelos
quais estão dispostos a responder: pobre viajando de avião, negro em
universidade, empregada comprando o mesmo perfume da patroa. Eis o único debate
que interessa ao Partido. Conversar
dentro dos limites da encenação desta farsa em que os papéis, de vilão e
mocinho, já estão dispostos.
Tiveram efeito devastador no latão que dava substância ao
escudo desta narrativa os reiterados escândalos que decapitaram toda elite do
partido, que está na Papuda ou em vias de para lá ser mandada, a fragorosa
derrocada econômica que produziu 12 milhões de desempregados e realizou um
efeito sanfona na ascensão social dos que migraram de classe, mas decaíram.
Que o diga o resultado do segundo turno das eleições
municipais. Esse escudo de honra petista virou apenas uma tatuagem no peito do
que sobrou da militância.
Astier Basílio é jornalista, poeta, ficcionista e
dramaturgo. Venceu o Prêmio Funarte de Dramaturgia 2014
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