Artigo de Fernando Henrique Cardoso, O Globo
Há poucos dias, em Lisboa, assustei- me vendo o noticiário
da TV. Surgiu na tela um porta-aviões russo deslizando nas costas europeias,
cercado por navios patrulheiros. Que mal haveria, pensei depois, em mostrar o
garbo de um navio russo? Nada e tudo. Fossem normais os dias e seria tão banal
quanto ver o desfilar de um porta-aviões da armada americana cercado por
poderosos navios protetores. Por que, então, o susto?
Porque as coisas estão mudando, há cada vez mais riscos e
medos no ar. Passadas décadas do estabelecimento de relações diplomáticas entre
a China comunista e os Estados Unidos (pasmem! sob Nixon e Kissinger), em
meados dos anos 70, e do fim da União Soviética, no início dos anos 90, nos
damos conta do que esses fatos significaram: a Pax Americana. Terá ela chegado
ao fim? Pode ser.
Os russos, com sua ingerência na Síria, tentam forçar o
Ocidente a dar-se conta de que, por mais que seu poderio bélico haja diminuído,
ainda são uma potência atômica. Os novos tzares se dão ao luxo de ocupar a
Crimeia e de ameaçar a Ucrânia sem que a Otan, ou quem seja, limite suas
aspirações restauradoras do que historicamente pertenceu à Rússia.
Também a China depois de décadas de relações estáveis com os
Estados Unidos se ouriça com o Tratado Transpacífico (TTP), e mostra disposição
de definir como “suas” ilhas remotas situadas no Mar do Japão e de reivindicar
soberania sobre águas presumivelmente internacionais no Mar do Sul da China. Ao
mesmo tempo, desenvolve projetos de integração viária e econômica com a Europa,
quem sabe sentindo-se mais segura na Eurásia do que no Pacífico.
E começa a ser mais amiga da Rússia, de quem sempre foi
rival. A Europa fragmentada, mais ainda depois do Brexit, não é capaz de
responder aos desafios da imigração crescente dos desesperados da terra, nem de
outorgar nova legitimidade ao pacto social de pós-guerra que a manteve una e
próspera. Como responder aos novos tempos de desemprego e baixo crescimento, e
evitar a onda direitista e reacionária?
Não escrevo isso por diletantismo geopolítico. Em Paris, de
onde envio este artigo, segui as notícias das eleições brasileiras. As urnas
confirmaram o que se previa: a derrocada do PT, os êxitos do PSDB e a
emergência da antipolítica, que se expressou nas abstenções, nas anulações de
voto e na vitória de candidatos de não partidos. Ganhamos, diria como eleitor
do PSDB, mas para o que fazer?
Qual é a proposta, não só do PSDB, mas dos dirigentes
políticos em geral, para o Brasil como nação, mais do que como simples
economia, e como país que é parte de um mundo desafiador, no qual coexistem os
avanços da globalização e as dificuldades dos Estados nacionais para lidar com
as demandas dos perdedores dela e das organizações internacionais para evitar a
escalada de conflitos geopolíticos?
Nesse contexto, tenho a sensação de que os que temos
responsabilidades públicas ainda não sentimos com força a urgência do que é
preciso fazer para reconstruir o tecido social de um país com 12 milhões de
desempregados, em situação fiscal fal mentar e com suas formas tradicionais de
coesão política desarticuladas. O estrago que o lulopetismo e o milenarismo
esquerdista fizeram foi sentido pelo povo, como as urnas mostraram.
Mas nós, líderes políticos, temo ainda não termos percebido
que acima de nossas bandeiras partidárias temos que reconstruir a economia,
refazer as bases da convivência política, tragadas moralmente pela
permissividade e pela corrupção, e engatar novamente o Brasil no mundo em que
vivemos.
Talvez não tenhamos nos dado conta de que as classes sociais
hierarquizadas em cujas diferenças amarrávamos nossas ideologias e nossos
partidos, sem se dissolverem, estão fragmentadas em múltiplos interesses,
valores e lealdades num caleidoscópio de fios que se tecem e se desfazem graças
às novas formas de comunicação (cada vez mais instantânea) que quebram as
referências políticas tradicionais.
Teremos discernimento para vislumbrar onde ancorar o
interesse nacional num mundo de predominância financeiro-tecnológica, bélico e
com riscos de incêndio? Saberemos refazer alguma solidariedade, pelo menos
sul-americana, e, a partir dela, nos posicionarmos sem a afetação de que somos
uma potência, e ao mesmo tempo sem sermos subservientes às nações poderosas nem
prisioneiros de um “terceiro mundo” que não funciona mais como periferia
colonial do capitalismo competitivo, como foi no passado?
Não estaremos à altura dos desafios se não afirmarmos que
precisamos de uma trégua nacional, não para conciliar elites, mas para pactuar
o futuro e pensar sobre ele. Será preciso coragem para o STF deixar a Lava-Jato
cumprir seu papel de restaurador da moral pública, mas também manter vivo o
respeito aos direitos individuais. E o governo federal, que bem fez em buscar a
harmonia dos Poderes a despeito da figura dos titulares, precisa encaminhar
soluções jurídicas que mantenham as empresas ativas, salvaguardando os empregos
e nossa capacidade produtiva, sem prejuízo da punição dos dirigentes que a
Justiça julgar cabível aos responsáveis por crimes.
Caso contrário, não faltam capitais globais dispostos a
adquirir na bacia das almas o que caro custou construir. Tais desafios requerem
vozes. No vazio político das sociedades contemporâneas, paradoxalmente,
precisamos que os líderes se comprometam, explicitem suas posições, tomem
partido sem tanta preocupação com seus “partidos” e que ao propor soluções se
recordem de que a voz não ouvida, a dos que se sentem deslocados pelo
“progresso”, se não encontrar um lugar digno na sociedade do futuro se tornará
inimiga dela.
Cabe ao PSDB responder à vitória reafirmando o social de seu
nome e acompanhando as transformações dos valores e da cultura, opondo-se,
portanto, às ondas reacionárias não só na Europa, mas também entre nós.
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