Da ISTOÉ
A combinação deletéria entre a irresponsabilidade
administrativa e a corrupção sem limites fez o Rio de Janeiro transbordar.
Mergulhou o Estado no caos absoluto, cujo ápice foi alcançado na última semana
com a prisão de dois ex-governadores em menos de 24 horas, Anthony Garotinho
(PR) e Sérgio Cabral (PMDB), flagrados em malfeitos incontestáveis. Foi a
fagulha que faltava para convulsionar de vez as ruas – já em ebulição naquele
momento na esteira da invasão e depredação da Assembleia Legislativa (Alerj)
por funcionários públicos que protestavam contra os salários atrasados. Numa
sensação de alívio, muitos cariocas saíram de suas casas para comemorar a
prisão dos ex-governadores apanhados como saqueadores do Estado, – como o grupo
que esperou Cabral na entrada do complexo penitenciário de Bangu na
quinta-feira 17 com o espocar de rojões e fogos de artifício. A detenção dos
dois políticos também aflorou o mais genuíno sentimento de revolta na
população. Na porta da PF, no Rio, um manifestante mais exaltado ergueu um
cartaz com os dizeres: “Je suis Sérgio Cabral na cadeia Já”. Compreensível. Com
o Rio atualmente em situação falimentar, mais uma vez quem está sendo chamado
para pagar a conta é o povo – haja vista o pacote de medidas austeras preparado
pelo atual governador, Luiz Fernando Pezão (PMDB) em um ano com previsão de
déficit na casa dos R$ 19 bi. No cardápio amargo de arrochos, Pezão inclui 30%
de redução de salário, taxação de aposentados e adiamento de reajustes. Tudo
isso, somado às revelações da Lava Jato de que o grupo que comandou o Estado
por quase duas décadas, liderado por Cabral, desviou pelo menos R$ 224 milhões
em conluio com empreiteiras, compõe a tempestade perfeita.
O RETRATO DO RIO
As prisões dos ex-governadores Anthony Garotinho e Sérgio
Cabral embalaram manifestações pelas ruas da cidade.
O ENRIQUECIMENTO PESSOAL
O dinheiro amealhado sem qualquer pudor dentro da sede do
Executivo local, segundo as investigações, em reuniões com executivos das
construtoras serviu para patrocinar o que a população mais abomina nos
políticos, independentemente de ideologia ou coloração partidária: o
enriquecimento pessoal. Bancou viagens, iates, vestidos, jóias caras da esposa
do ex-governador do PMDB e até o cachorro quente da festinha de um de seus
filhos. Só a mulher de Cabral teria recebido R$ 49 milhões no esquema
desbaratado pela PF na última semana. As empresas, por sua vez, foram
agraciadas com aditivos em contratos públicos e incentivos fiscais, que
constituem a base da atual insolvência financeira do Estado. Useiro e vezeiro
em práticas nada republicanas, Garotinho não foi menos ousado. Na quarta-feira
16, dia anterior à detenção de Cabral, o político do PR foi preso
preventivamente acusado de comandar um esquema de compra de votos na eleição em
Campos (RJ) por meio do programa Cheque Cidadão. Segundo o juiz Glaucenir Silva
de Oliveira, da 100ª zona eleitoral, “Garotinho comanda com ‘mão de ferro’ um
verdadeiro esquema de corrupção eleitoral” na cidade em que sua mulher, Rosinha
(PR), é prefeita. Na quinta-feira 17, o político que governou o Estado entre
1999 e 2002 protagonizou cenas teatrais ao ser transferido do hospital
municipal Souza Aguiar para a cadeia. “Vocês estão de sacanagem. Querem me
matar”, gritou o ex-governador à entrada da ambulância, enquanto se debatia
numa maca empurrada por funcionários do hospital. Um espetáculo de horrores e
vitimização.
O mais estupefaciente é que, há pouco mais de dois anos, o
Rio tinha um oceano de possibilidades para, enfim, dar certo. O cenário era
alvissareiro. Além do dinheiro proveniente dos royalties do petróleo, a
alimentar generosamente as arcas do Estado, e dos megaeventos esportivos
mundiais, como a Copa do Mundo e a Olimpíada, batendo à porta, havia uma
sintonia fina com os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff, a permitir uma
série de parcerias que, ao menos na retórica, deveriam resultar em benefícios
para a população fluminense. Não foram poucas as ocasiões em que os chefes do
Executivo federal participaram de inaugurações de obras no Rio em solenidades
marcadas por discursos inflamados, trocas mútuas de rasgados elogios e muita
mas muita pompa e circunstância. O resto da história, no entanto, todos sabem.
O Estado foi tragado pela barbeiragem administrativa e a corrupção, e afundou
numa crise econômica sem precedentes. Não há recursos para despesas mais
básicas, como segurança e saúde, por exemplo.
Enquanto o Rio respirava – e ainda respira – por aparelhos,
para a turma de Cabral não faltava “oxigênio”. Era dessa maneira que o
ex-secretário estadual de Obras Hudson Braga tratava o suborno exigido das
empresas nos grandes contratos de obras, de acordo com a delação premiada das
empreiteiras. Cálculos do Ministério Público Federal demonstram que o esquema
comandado pelo ex-governador provocou um rombo em projetos executados pela
Carioca Engenharia e pela Andrade Gutierrez. De acordo com as delações das duas
empresas, 7% do valor total foi convertido em propina e dividido da seguinte
forma: 5% para Cabral, 1% para Braga e 1% para conselheiros do Tribunal de
Contas do Rio (TCE), responsável pela fiscalização dos contratos. O pagamento
de propina era efetuado em espécie. Cada empreiteira tinha um responsável pelo
pagamento e cada beneficiado, o seu cobrador. As principais obras fraudadas
foram o Arco Metropolitano, a reforma do estádio do Maracanã e o PAC das
Favelas.
As investigações reuniram uma fartura de provas de que o
dinheiro pago ilegalmente foi, em parte, lavado por empresas criadas pelos
próprios favorecidos, usando nomes de amigos e parentes. O esquema bancou uma
vida de luxo para os envolvidos, que inclui viagens internacionais, idas a
restaurantes sofisticados, compras de joias e uso de lancha e helicóptero em
nome de laranjas. Uma das jóias, avaliada em R$ 800 mil, teve como destino o
dedo anelar da mulher de Cabral, Adriana Ancelmo, levada em condução coercitiva
pela PF na quinta-feira 17 acusada de embolsar R$ 49 milhões. O mimo foi um
presente de Fernando Cavendish, ex dono da Delta Construções, cuja revelação de
amizade marca o início da débâcle de Cabral. Outros integrantes do círculo
íntimo do ex-governador atuavam como operadores do peemedebista. São eles o
economista Carlos Emanuel de Carvalho Miranda, o Carlinhos, ex-marido de uma
prima de Cabral, e Luiz Cláudio Bezerra. Toda a negociação entre as
empreiteiras e as autoridades era arbitrada pelo ex-secretário de governo de
Cabral, Wilson Carlos, responsável pela distribuição da propina, segundo as
próprias empreiteiras. Tanto Wilson Carlos como Carlinhos foram detidos na
última semana.
PRÁTICA CONTINUADA
As práticas ilegais extrapolaram a gestão da Cabral no Rio
de Janeiro. Alvo principal da operação denominada “Calicute”, a expedição de
Pedro Álvares Cabral às Índias que marcou a ascensão e queda do navegador no
início do século XVI, Cabral, segundo o juiz Sérgio Moro, continuou recebendo
propina mesmo depois de deixar o mandato. Nos últimos dias, Moro determinou o
bloqueio de até R$ 10 milhões das contas do ex-governador, de sua mulher
Adriana, e dos outros detidos. “As provas são da prática reiterada de crimes
contra a administração pública e de lavagem de dinheiro”, justificou Moro em
seu despacho. Ele disse que seria uma afronta deixar que os investigados
continuassem em liberdade usufruindo “do produto milionário de seus crimes”
frente a “ruína das contas públicas do governo fluminense.” Em uma frase, o
juiz de Curitiba resumiu a corrupção que varreu o Rio: “Uma versão criminosa de
governantes ricos e governados pobres.”
Como os pagamentos eram feitos em espécie, o rastreamento é
difícil. Na lista de gastos para lavagem de dinheiro há blindagem de veículos,
compra de carro, objetos de arte e móveis, e até o pagamento de cachorro quente
para a festa de um filho de Cabral, no valor de R$1.070,00. “A sociedade sofre
e muito com os efeitos da corrupção. Por isso, essas investigações são
importantes e devem ser levadas até o fim, doa a quem doer”, afirmou o
procurador Athayde Ribeiro Costa, do MPF do Paraná. Parte dos objetos adquiridos
com dinheiro de propina foi apreendida pelos agentes da PF. “Houve lavagem de
ativos de forma profissional e crimes seriados”, complementou Athayde Ribeiro
Costa. Moro destacou ainda que “causa certa estranheza, por exemplo, a
frequência de aquisições vultosas de bens”, sempre em espécie, como as feitas
por Adriana Anselmo”. Ele listou o pagamento, em agosto de 2015, de R$
25.000,00 por dois Mini Buggys; em março de 2012, de R$ 72.009,31 por
equipamentos gastronômicos, e em 2013, R$ 57.038,00 por vestidos de festa,
sempre em dinheiro vivo. A força-tarefa da Lava Jato concluiu, ainda, que
Cabral recebeu mesada de R$ 350 mil da Andrade Gutierrez por pelo menos um ano,
e, da Carioca Engenharia, de R$ 200 mil mensais, no primeiro mandato, de R$ 500
mil, no segundo.
O jogo virou para o ex-governador, um dos mais influentes
personagens da história política do Rio de Janeiro. Na sexta-feira 18, depois
de passar a primeira noite numa cela de nove metros quadrados no complexo de
Gericinó, em Bangu, ao lado de outros cinco presos, Cabral era o retrato da
derrota. De camiseta branca e cabeça raspada, exibia os olhos avermelhados e um
semblante abatido. No café da manhã, aceitou o pão com manteiga e o café com
leite oferecidos pelos agentes penitenciários.
Os eleitores fluminenses que possibilitaram a Cabral seis
triunfos nas urnas – três para deputado estadual, duas para senador e
governador – não vislumbravam uma ascensão e queda numa velocidade tão rápida.
Bertolt Brecht dizia que “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas
ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Sobre o Rio atual, que
caminha célere para se tornar um exemplar tupiniquim da Grécia, resta saber se
sobrará algo da violência – traduzida em administrações tão temerárias quanto corruptas
– dos seus gestores contra a população.
LUXO E OSTENTAÇÃO
A vida glamourosa de Sérgio Cabral antes da prisão: mansão
em Mangaratiba e festas em Paris
A VIAGEM DE CABRAL A CALICUTE
A Polícia Federal tem sido criativa ao nomear as diversas
fases da Lava Jato. Para designar a operação que culminou na prisão do
ex-governador do Rio Sérgio Cabral, a PF recorreu a uma cidade que foi palco de
trapalhadas de outro Cabral famoso. Em 1500, em um episódio conhecido como “A
Tormenta de Calicute”, Pedro Álvares Cabral, o desbravador das terras
brasileiras, tentou fazer fortuna na localidade indiana que, à época,
funcionava como um entreposto mundial. Ao desembarcar ali com tropas
portuguesas, Cabral pretendia negociar os direitos para a venda de especiarias
e construir um posto comercial. O problema é que o comércio na região era
dominado por árabes. Obviamente, eles não aceitaram a chegada dos garbosos
concorrentes. Seguiu-se daí um embate entre árabes e portugueses, com
embarcações queimadas e centenas de homens mortos. Derrotado, Cabral partiu em
retirada – para nunca mais voltar a Calicute. Cinco séculos depois, a PF
decidiu colocar a palavra novamente no mapa brasileiro. O paralelo é justo.
Afinal, descobriu-se que o Cabral fluminense também atuava em uma espécie de
comércio, saqueando dinheiro público em forma de propina, segundo as
investigações. Na semana passada, uma piada que circulou nas redes sociais
resumiu a questão: no Brasil, rouba-se desde Cabral.
UM HOMEM DADO A ESPETÁCULOS
O ex-governador Anthony Garotinho adora fazer encenações
para posar de vítima
Canastrão, cara de pau ou simplesmente embromador. Não
importa como se qualifique, o certo é que o ex-governador do Rio, Anthony
Garotinho, tal qual um meninão mimado, adora fazer um show sempre que se vê
contrariado. Foi assim na quinta-feira 17, quando protagonizou um esperneio ao
vivo no momento de ser transferido para o complexo penitenciário de Bangu. Com
a encenação patética, o ex-governador queria se colocar no papel de vítima.
Ator de péssima qualidade, sua atuação não recebeu aplausos. Pelo contrário, o
grosso da plateia comemorou a prisão.
Há dez anos, durante a disputa presidencial, o mesmo
Garotinho recorreu a outro espetáculo dantesco para tentar comover o eleitor.
Diante da acusação de haver recebido dinheiro de empresas de fachada para sua
campanha ao Palácio do Planalto, decretou uma bizarra greve de fome com direito
a soro fisiológico e acompanhamento médico. Durante 11 dias sua encenação virou
uma espécie de reality show, sem o menor efeito político, e terminou tão
desmoralizada quanto sua campanha. Até hoje, dentro do PMDB há quem garanta que
durante a greve Garotinho se alimentava escondido.
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