Fábio de Biazzi, O Estado de S.Paulo
Já se passaram uns bons dias, mas toda vez que deparamos com
uma foto de Donald Trump a primeira palavra que nos vem à mente ainda é
“inacreditável”. Indagamos a nós mesmos: como foi possível a Presidência
americana ter parado nas mãos de um populista digno de uma república de
bananas, um inconsequente com falas racistas e misóginas e um bufão reconhecido
por seu comportamento histriônico num programa bizarro em que destrata os
participantes?
Quem teve a curiosidade e a paciência de ouvir algumas de
suas entrevistas e os três debates presidenciais pôde observar que, na sua
ignorância e em análises simplistas sobre os mais variados temas, a palavra
preferencial de Trump era “desastre”. Para ele, o Obamacare é um “desastre”, a
atuação de Hillary Clinton como secretária de Estado foi um “desastre” e a
situação econômica da América é um “desastre”. Embora possa receber críticas ou
ressalvas, nada disso se tem mostrado um desastre. O “desastre”, na verdade,
foi a eleição de Donald John Trump, a qual deve estar fazendo Thomas Jefferson,
Franklin Roosevelt e Martin Luther King se revirarem no túmulo.
Entre as consequências mais imediatas de sua vitória estão a
instabilidade dos mercados, antecipando eventuais medidas protecionistas, a
certeza de uma Suprema Corte com viés extremamente conservador, o assanhamento
da extrema direita na Europa, o muito provável rompimento dos EUA com o Acordo
de Paris sobre meio ambiente e as dúvidas quanto ao futuro do papel ímpar da
democracia americana como potência econômica e militar no mundo. No médio
prazo, ainda veremos se ele realmente vai abrir uma guerra comercial com a
China, erguer um muro – ou uma cerca – na divisa com o México, deportar 3 milhões
de imigrantes e processar Hillary Clinton, todas promessas de campanha,
usualmente seguidas do bordão “let’s make America great again”.
Ele foi eleito apesar de ter chamado os imigrantes mexicanos
de estupradores e assassinos, ter desrespeitado combatentes filhos de
imigrantes, ter feito pouco-caso de um herói de guerra, John McCain, por ter
sido feito prisioneiro no Vietnã, ter insultado diversas minorias étnicas e
sexuais, insinuar que gostaria de namorar sua filha Ivanka e ter sido flagrado
se vangloriando de assediar e agredir sexualmente inúmeras mulheres, julgando
que elas nunca reagiriam por ele ser pretensamente rico e famoso. Como disse o
comediante John Oliver, nada disso é normal.
Apesar desses disparates e de nunca ter ocupado nenhum cargo
na administração pública, Trump foi eleito. Algumas das análises mais
interessantes sobre esse fato defendem a ideia de que tal ocorreu apesar de
suas posições preconceituosas e de seu comportamento deplorável, e não por
conta disso. Tanto a revista The Economist quanto a New Yorker destacam o papel
central desempenhado pela preocupação dos americanos com a economia e os
empregos. Ambas as publicações concordam que a recuperação econômica dos
últimos anos foi alcançada com o aumento da concentração de renda e que a
insegurança econômica e social, a queda no nível de emprego e de qualidade de
vida de boa parte da população foram fundamentais para que ele ganhasse a
eleição. Reforçando essa tese, é interessante relembrar que ele só ganhou
porque levou a maior parte dos votos de grandes Estados do outrora muito
industrializado “cinturão da ferrugem”: Pennsylvania, Michigan, Ohio e
Wisconsin.
Além disso, o “Hitler laranja” – como o denominou o também
comediante Bill Maher – teria sido também favorecido pela imagem bastante
difundida de Hillary ser alguém “não confiável” e pela inconsequente, para
dizer o mínimo, atitude do diretor do FBI, James Comey, de dizer que o Bureau
iria analisar milhares de e-mails de um ex-parlamentar, pervertido sexual e
marido de uma assistente de Hillary, insinuando que eles poderiam incriminá-la,
apenas três semanas antes da eleição. O fato de Comey vir a público dois dias
antes do pleito dizer que nada fora encontrado só serviu para realimentar o
clima de desconfiança sobre ela.
Um último fator pode ter contribuído para o desastre: a
crescente relevância das mídias sociais. O próprio Trump diz ter ganho a
eleição pelo Twitter, disparando as mais grosseiras inverdades madrugadas
adentro ao longo dos últimos meses. O Twitter, o Facebook, os blogs e o
WhatsApp são formidáveis canais que ligam as pessoas ao redor do planeta, mas
carregam em seu DNA a incapacidade de se verificar a veracidade e
confiabilidade dos dados e das informações que são por eles transmitidos.
Nesses meios, praticamente inexiste a possibilidade de exercer a verificação
dos fatos, sua relativização e priorização. Neles, análises fundamentadas
convivem com os absurdos mais disparatados. As mídias sociais agravam nossa
tendência a escutar apenas os canais ou as pessoas que refletem o que já
sabemos ou pensamos, criando tribos que não conversam e tendem a reforçar seus
preconceitos, paranoias e visões distorcidas do mundo. Esse fenômeno se torna
muito relevante e preocupante quando cerca de 60% dos americanos dizem saber das
notícias por meio das mídias sociais e mais de 40% dos adultos usam só o
Facebook para se informar. Quando esses números são combinados com um candidato
à Presidência que profere mentiras ou fatos distorcidos em três de cada quatro
afirmativas, o resultado pode ser – e foi – um enorme desastre.
Será nesse contexto e com todas essas complicações que a
democracia americana passará pelo maior teste de sua história. Infelizmente,
agora é preciso aceitar que o inacreditável aconteceu e enxergar que seria perigosamente
contraproducente exibir algum otimismo neste momento, dado ser bastante
duvidoso esperar decisões sábias ou um comportamento exemplar de quem viveu 70
anos sem dar mostras disso.
Fábio de Biazzi – Engenheiro de produção, doutor em
engenharia pela Usp, diretor executivo e consultor de gestão, é professor de
liderança e comportamento organizacional do MBA executivo do Insper.
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